“Mãe Zulmira, o amanhecer de uma raça”, belíssima
composição dos carnavalescos Gilson e Almeron, que ajudou a dar o título de
campeã do Carnaval de Manaus a Escola de Samba Reino Unido da Liberdade, em
1979, também ajudou a mudar minha ideia sobre o candomblé. Na adolescência,
brincando nas ruas do Morro da Liberdade, onde foi criada a Escola por
convicção e determinação de Bosco Saraiva, eu tinha até medo de passar em
frente ao Batuque de “Mãe Zulmira” que ficava em frente ao Grupo Escolar
Adalberto Valle, onde estudava e aprendia as primeiras lições com as professoras
- inesquecíveis Rosa Eduarci Marinho e Aidee, que chegavam sempre para dar
aulas num carro karmanguia amarelo conversível do namorado de uma delas. Outras
que moravam perto da Escola se deslocavam a pé, enquanto outras chegavam num
ônibus da Empresa Ana Cássia, veículos construídos em cima de carrocerias de
caminhões, totalmente em madeira e com poltronas duras.
Na época da diretora Alda Figueira Peres, no início
da década de 70, as professoras eram admiradas e respeitadas como não se vê
mais nos dias de hoje e nos levavam para passeios em jardins zoológicos e ao
melhor balneário público de Manaus, o Parque 10 de Novembro. Os alunos se
cotizavam durante vários dias para alugar um caminhão que os transportasse. Todos
subiam na carroceria e até a baderna que faziam se transformava em uma grande
festa! Quando visitávamos o Balneário do Parque 10, o caminhão só seguia até a
fábrica Magistral, na atual Rua Mário Ypiranga, na época só um matagal, e o
resto do percurso se fazia a pé, com muito cuidado, por medo de cobras e outros
bichos. Concluída “a pesquisa”, a professora Rosa recolhia todos os alunos à
carroceria do caminhão e voltavam ao Grupo Escolar Adalberto Valle. Eram
passeios inesquecíveis! Pena que foram poucas vezes! E a maior parte deles, era
usada a desculpa que os alunos iriam fazer pesquisas que nunca eram feitas, mas
era uma grande festa!
Contudo, os alunos – principalmente eu - tinham medo
só de ouvir quando os batuques começavam a tocar no terreiro de mãe Zulmira,
que ainda se localiza em frente à antiga estação de ônibus da empresa Ana
Cássia, de propriedade de Cassiano Cirilo Anunciação, mais conhecido por “Batará”,
mas que foi vendida e mudou de nome várias vezes até ser banida do sistema de
transporte urbano de Manaus pelo ex-prefeito Eduardo Braga, de forma abrupta, já
com o nome “Santa Luzia” e de propriedade do administrador de empresas
Francisco Saldanha Bezerra, por questões puramente políticas. O batuque
continua no mesmo local; a estação de ônibus e a empresa, não!
- Você viu aquela estátua grande e vermelha que
estava lá dentro? Acho que eles pegam santos porque ficam dançando, rodando e
tomando uma bebida e depois ficam se batendo toda. Dizem que aquele local não é
apropriado para nós!
Eram os comentários dos alunos depois de olharem
pelas frestas do barracão de madeira, quando começavam os barulhos de batuque,
no terreiro. A construção do batuque da Mãe Zulmira é antigo, mas na década de
70, ocupava todo um terreno cercado de mato. Era grande e cheio de árvores em
volta. “Se entrarmos nesse mato, podemos sair nunca mais porque ele tem
assombração!”, diziam aos outros alunos e isso se espalhava rápido entre a
meninada. Mas sempre alguém mais afoito entrava e saia de dentro do mato e
dizia para os medrosos: “não tem nada lá, além de mato mesmo”, mas ninguém se
arriscava porque também ouvíamos barulho de animais e pensávamos nas almas dos
animais abatidos durante os cultos sagrados do camdoblé – que nunca conseguimos
ver – passeavam no local. Diziam que os frequentadores do Batuque da Mãe
Zulmira bebiam o sangue dos animais sacrificados! Mas nunca vimos nada disso
acontecer...
Hoje, sabemos que o que se praticava dentro do
terreiro era uma religião
afro-brasileira derivada do animismo (alma) africano, onde se cultuavam orixás,
que eram as estátuas, que os alunos viam quando olhava pelas frestas do batuque,
igual às estátuas existentes na Igreja Católica. Segundo os registros
históricos, a religião foi desenvolvida no Brasil com o conhecimento dos
sacerdotes africanos que foram escravizados e trazidos para o Brasil, no século
XVIII. Embora confinada originalmente à população de negros escravizados,
inicialmente em senzalas, quilombos e terreiros, a prática foi proibida pela
Igreja Católica. Mesmo assim, prosperou nos quatro séculos seguintes e expandiu
consideravelmente desde o fim da escravatura em 1888. Segundo levantamentos não
oficiais e publicações sobre o assunto, o candomblé tem seguidores em várias
classes sociais com aproximadamente 3 milhões de brasileiros, ou 1,5% do total
da população do Brasil, declararam o candomblé como sua segunda religião. Na
cidade de Salvador, há registro de 2.230 terreiros registrados e funcionando
plenamente, sendo considerada e aceita pelo seu sincretismo religioso.
Mas que dava medo aos alunos,
ah, isso dava sim! Mas talvez a música dos compositores Gilson e Almeron tenha
ajudado aos alunos – se não a todos, pelo menos a mim – a perder o medo do
batuque da “Mãe Zulmira” e, com isso, a Escola de Samba Reino Unido da
Liberdade tenha sido campeã do carnaval de rua de 1979, porque os dois
afirmaram em um trecho da música que “em
seu palácio mostre a liberdade/me dê amor, carinho e proteção”.
Grande mãe Zulmira, onde pra mortal nenhum botar defeito.
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