sábado, 22 de fevereiro de 2014

MENINO SAQUEIRO RETORNA AO ADOLPHO LISBOA, SEM O SINO!



Saqueiro! Saqueiro!

Ainda deu para ouvir esse grito estridente e forte de algum peixeiro, ecoando entre a algazarra e vozes de compradores de peixe,  quando entrei pela primeira vez no Mercado Municipal Adolfo Lisboa, hoje, um sábado, no dia 22 de fevereiro de 2014. Quase não reconhecia. Estava diferente em seu interior e lindo em sua arquitetura clássica preservada, inclusive com a área contínua reservada para a venda exclusiva de tartarugas na época em que podiam ser comercializadas em cima de bancas, todas se mexendo, ainda!

Contudo, imperfeito para mim porque senti saudades do sino que existia no final do mercado, inaugurado na administração Adolpho Lisboa, que anunciava o horário em que a fiscalização municipal entraria em seu interior e jogaria creolina sobre tudo que encontrasse e que estivesse em cima das bancas de peixes e carnes, inutilizando tudo. Também era o momento em que os preços baixavam e os pedintes  entravam e recolhiam donativos que seriam logo depois desprezados pelo efeito da creolina. Isso ocorreria depois das 10 horas da manhã.

Os pedintes faziam a festa com a redução nos preços. Dentre estes estava o desembargador André Vidal de Araújo, que mantinha várias obras sociais em Manaus com as doações que recebia. O sino não encontrei, mas a restauração do mercado municipal depois de 7 anos fechado e duas administrações depois, foi devolvido à Manaus restaurado e reinaugurado pelo prefeito Arthur Virgílio Neto, no dia do aniversário de fundação da cidade. Em vez do sino, observei muitos fotógrafos brasileiros e estrangeiros registrando a linda e perfeita obra de restauração. Sobre o teto de telhas do mercado, li a placa em ferro pintada na cor vermelha:  “MERCADO MUNICIPAL ADOLPHO” LISBOA”

Só entrei no mercado porque encontrei um local para estacionar, sem necessidade de colocar o cartão preferencial que possuo - embora quase nunca o use quando me dirijo à Feira da Banana - e recordei o tempo em que me deslocava ao mercado, logo cedo, para vender sacos de peixes produzidos de sacos de cimento virados do avesso e com grude passado em suas beiras, passados com uma colher comum pela minha mãe Josefa Costa. Ela juntava todos os sacos sobre a mesa, de maneira que ficassem prontos para serem colados, enfiava a colher no grude e passava sobre todos ao mesmo tempo. Eu tinha só o trabalho de dobrá-los, colocar em baixo do braço e ir vendê-los no mercado, usando um calção costurado por ela com saco de açúcar, também dobrado ao contrário e costurado em sua máquina Singer, de pedal. Sob meus pés me acompanhavam umas sandálias havaianas, que me acostumei a usá-la até os dias de hoje. Na visita ao mercado, levou-me por curiosidade à área de venda do peixe, agora em bancas de alumínio, e não como as antigas bancas de cimento azulejadas brancos e entre as quais eu ouvia o grito do vendedor de peixe:- Saqueiro, saqueiro! Era mais uma venda que faria, com certeza!

Depois da visita, fiquei triste porque não vi o sino que ficava pendurado no mesmo local histórico de antes, aos fundos do mercado Municipal Adolpho Lisboa, que, muito embora dissessem que também teria sido restaurado e que voltaria ao local, não estava lá, não mais para anunciar a entrada dos fiscais municipais, mas para, quem sabe, badalar anunciando que o menino saqueiro estava retornando pela primeira vez no lugar, depois de mais de 40 anos, onde também passara uma boa parte de sua infância. Mas quanta pretensão minha? Lógico que se o sino, mesmo que estivesse no mesmo local, não me reconheceria em minha velhice e não tocaria para mim! Mas gostei do que vi, apesar da falta do sino!

Mas me senti com doze anos idade, anunciando na área de venda de peixe: - Saco, quem vai querer saco para peixe. É forte e não rasga! Minha mãe garante!  Era muito gostosa minha vida inocente de menino que vendia de tudo que fosse honesto!

12 comentários:

  1. Valeu, um belo texto muito agradável em se ler. Um abração.

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  2. Rafael De Queiroz Neto Diante da ausência do sino, resta- nos o consolo e a honra de saber que nos céus nos esperam sons de trombetas celestiais, tocadas por miríade de anjos.

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  3. Delma Maria de Oliveira. Muito bom. Gostei muito!

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  4. Silvia Cunha Bela história. Naquela época crianças podiam ajudar os pais sem que os pais fossem acusados de exploradores e os filhos cresciam sabendo trabalhar com honestidade

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  5. Neuromaster i love the story

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  6. 22/02/2014 20:15 - Maria Santino
    Olá! Senti banzeiros e banzeiros de emoções ao ler tuas linhas. Que bom ver pessoas narrando sobre o que é nosso, coisas da nossa terra cabocla. Naveguei lembrado das primeiras vezes que visitei o "Mercado Grande" como meu pai costuma chamar. Sim, é uma narrativa muito boa, um recorte da vida que dá gosto de conferir. Parabéns. Um forte abraço e tenha um linho fim de semana.

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  7. de João Batista (MG):

    Oi Carlos, Mais uma vez você nos brindando com estas belas passagens de sua vida, que tanto nos emociona também.
    Que bom meu amigo, que você mantém estas lembranças em sua alma e que os sentimentos que emergem de suas lembranças o faz renascer um pouco a cada dia.
    parabéns por mais esta belíssima cronica.

    Grande abraço
    JB

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  8. Arnaldo100m CO - M Sc&rto." Bom dia caro amigo Carlos Costa! Belas lembranças!!! Saudades.... Eu também fui engraxate e vendi picolé nas ruas de Rondon, lááaáááá no Paraná onde passei minha infância e um pouco da juventude! Voltei lá em (99) , porém tudo muito mudado e até um pouco da frustração de não rever mais aquele lugar (a pesar de ainda ser o mesmo). Muito bonito seu conto! ÓTIMO!...Abraços e uma ótima semana!

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  9. Maria Auxiliadora Paula Ribeiro Cãs lhe emolduram a cabeça, novos trajes, conservando, apenas, o costume de sandálias havaianas, que assimilara da infância, o menino Saqueiro, de outrora, ao entrar no mercado Municipal Adolpho Lisboa, dá um mergulho no tempo, em busca das emoções de um passado distante, hermeticamente trancado no âmago de seu coração. Apesar da pobreza extrema, a vender sacos de cimento que, manipulados às avessas pela mãe, D. Josefa Costa, se tornavam recipientes a armazenar peixes e que lhes rendiam o necessário ao sustento, Saqueiro era uma criança muito feliz. Pouco lhe importava o epíteto com que o cognominavam, já que, realmente, enquanto sacos de cimento, às avessas vendia de sacos de açúcar também se vestia...
    O menino, hoje homem e cidadão realizado, adentrando o local que lhe fora quase um habitat no passado, num passe de mágica, ouve o grito de um peixeiro: -Saqueiro! Saqueiro! Volta-se e percebe serem apenas ecos da saudade de um tempo em que ser saqueiro não lhe trazia mágoas, porque parte integrante da vida de uma criança pobre, mas, alegre criança.
    Saqueiro, perdendo-se no recinto, não se apercebe de que 40 anos são passados. Passeando o olhar pelo Mercado restaurado, sente a sua mudança para muito melhor, porém, sequioso de saudade, procura pelo sino de outrora, alerta aos vendedores de que a fiscalização se aproximava. Lembra-se de que sem o alerta do sino, os peixeiros se viam destroçados, tendo sua mercadoria ensopada de creolina, fato que a tornavam imprópria ao consumo. Porém, saudoso, não concebe a ideia de que com o progresso, as condições de higiene e a vigilância sanitária sempre atenta, necessário não se faz que hajam sinos para alerta, uma vez que os negociantes são plenamente conscientizados do dever de oferecerem uma mercadoria condizente com as normas do bem servir. Poucos são os que se atrevem a descumpri-las, sendo duramente punidos com pesadas multas, tendo seus produtos confiscados, enquanto discriminados pela população. Seus olhos, nesse momento, olhos de criança ávida a mitigar a sede de sua saudade, deixam a idade madura e continuam a buscar pelo sino, parte intrínseca à sua vida de menino. É assim que Saqueiro se sente criança de doze anos e, monologando bem baixinho, continua a anunciar: -Sacos! Sacos para peixes! Quem vai querer? Sacos fortes! Não rasgam! Olhem os sacos! Ainda monologando, sob o impacto da saudade, a vivenciar os seus dias de infante, Saqueiro deixa o Mercado. Porém, não demora que o movimento das ruas, no corre-corre dos transeuntes e carros que se alternam e se aglomeram, o despertem para a realidade. Emergindo-se do passado, Saqueiro se vê obrigado a admitir que o Mercado, com o progresso, ficou belíssimo e funcional, muito além de tudo o que pudera imaginar. Entretanto, inda que desperto, a reconhecer o óbvio, Saqueiro sente em seu coração um misto de dor e saudade e balbucia:- O que fizeram do sino de minha infância?

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  10. Glauce Guerra: "Que lindo! Deu saudades."

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  11. Muito bom...

    Um tanto alarmista, até porque os fatos narrados acontecem principalmente no Rio e em São Paulo.

    Se você considerar que coisas semelhantes acontecem na Argentina, Venezuela, Croácia, Egito, Líbia, Rússia etc, começa a cheirar a uma nova Operação Condor e, neste caso, não teríamos um problema na nossa Sociedade, mas à velha manipulação do Império.

    Eu substituiria "frágil democracia" por "jovem democracia"

    Grande abraço,

    Clóvis Ático

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  12. E haja saudade! Cheguei a Manaus nos fins de 1949, de sorte que ainda me lembro da “hora da creolina” vivida no nosso histórico Mercado Municipal Adolpho Lisboa, recentemente restaurado. Graças ao mistério da saudade, ainda me parece ouvir o badalar do sino que anunciava a oportunidade que tinham os mais desprovidos de assegurar o almoço, quiçá o jantar. Ah velhos tempos! E, inevitavelmente, o amargo adocicado da saudade! Abraços, amigo. Vasconcelos.

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