terça-feira, 31 de julho de 2012

NÃO VOTEM EM POLÍTICOS PÁRA-QUEDISTAS!

Não votem em candidatos a prefeitos e vereadores pára-quedistas que se apresentam como “salvadores da pátria”, principalmente em municípios de pouca expressão econômica e onde nunca residiram, pois é aí que reside o perigo de toda a corrupção eleitoral, que prosseguirá mais tarde e se firmará como uma prática comum e aceita por todos, como se fosse uma coisa integrante do cotidiano!

A falta de consciência crítica de eleitores, aliada ao “analfabetismo” ético, moral, social, mais à ausência de toda uma consciência social-coletiva-comunitária, é a porta de entrada para  eleição de políticos pára-quedistas que se aproveitam da “fragilidade emocional” do processo, mudam seus domicílios eleitorais, se elegem por municípios onde nunca viveram e, portanto, sem qualquer compromisso com o povo que o elegeu, prometendo muitas coisas e soluções para todos os problemas, mas depois o abandonando  ao Deus dará!  

De forma absurda e lamentável, as palavras e as práticas da honra, caráter, dignidade, respeito e cidadania estão gradativamente dando lugar ao à falta de honra, caráter, dignidade, respeito e cidadania pela simples degradação de valores éticos e morais que deveriam fazer parte de toda uma sociedade e não só dos políticos carreiristas. Mas a classe política (com exceções raríssimas) está apodrecendo, envolvida em escândalos e cada dia piorando um pouco mais!

Quando foi que esses valores sociais foram substituídos? Quando foi que substituíram a honra pela cara de pau, chegando até ao deboche? Quando foi que caráter passou a ser interpretado e entendido como a falta dele, o respeito foi trocado pelo desrespeito e a cidadania foi substituída pela falta dela? Estamos voltando ao “Estado de Natureza”, onde todos exerciam seus próprios poderes e não havia regulação para nada. No “Estado de Natureza” quem fosse mais poderoso, levava sempre vantagem sobre os demais membros de uma sociedade.

Ser e viver pobre, não significa falta de dignidade; ao contrário, é viver dignamente dentro de seu espaço social. Estou escrevendo sobre esse assunto porque fiquei assustado com a farra de corrupções embutidas nas festas de forró nos municípios pobres de alguns Estados do Nordeste, envolvendo, mais uma vez, prefeitos desonestos, empresários mais desonestos ainda, que abrem empresas fantasmas só para tornar mais fácil o desvio de verbas públicas.

O pior é que depois de descobertos, os advogados de prefeitos sempre dizem que provarão a inocência de seus clientes. Estão cumprindo só o legítimo dever os defenderem, mas é impressionante à falta ou excesso de óleo de peroba para os corruptos!

O problema da corrupção é histórico, mas está ficando ridícula na sua forma descarada como está sendo praticada atualmente por pessoas que deveriam priorizar saneamento, saúde, segurança e outros serviços públicos.

Enquanto os órgãos de fiscalização se omitem a essas escabrosas situações, desconfiem de todos os candidatos que apresentarão candidaturas à prefeitos e vereadores, principalmente para os que não moram ou convivem diariamente em seus municípios, porque esse é dos grandes perigos: desviam recursos dos municípios mais pobres e investem em mansões, carros importados, jóias e outros luxos, na capital para não levantar suspeitas.

sábado, 28 de julho de 2012

EU, MEU AVÔ E AS LEMBRANÇAS!

Enquanto corria descalço pela empoeirada Rua São Benedito, no bairro do Morro da Liberdade, arrastando “meu carro compactador” feito com três latas vazias de leite Ninho, cheios de areia e um arame passando por dentro delas, unindo-as como se fosse um só, ou correndo empurrando aro de bicicleta ou pneus velhos, imaginando serem meus carros de verdade, meu avô paterno, deixava sua casa na Rua Luiz, no bairro de Educandos, para visitar seus compadres em uma Rua do centro de Manaus, na década de 70.

José Raimundo andava sempre a pé, deslizando em catraias e sentindo a leve brisa do vento em seu rosto. Visitava seus compadres Rodrigo Pereira da Silva e Jorge Pereira da Silva, na Rua José Paranaguá conhecidos no Mercado Adolpho Lisboa, onde comercializavam as galinhas que compravam no motor regional “Barca Dalva” nas comunidades de Varre-Vento e Paraná da Eva para vendê-las no Mercado Municipal, na Capital.


A primeira visita era aos seus compadres, sempre com paletó de linho branco, chapéu na cabeça e um guarda chuva no braço. Era sempre assim que meu avô andava pelas ruas.  Se desse e o sol não estivesse muito causticante – o que era muito raro - ainda visitava seu irmão adotivo, João Timóteo, no Bairro Parque 10 de Novembro, andando a pé (era uma distância considerável), ou ao seu amigo João Baré, no bairro de São Raimundo, tomando, mais a vez, a catraia que deslizava saindo de um porto improvisado no bairro de Aparecida.


No final da tarde, voltava para casa, cansado.


Essa era a rotina de meu avô paterno; enquanto, a minha, era frequentar o Grupo Escolar Adalberto Vale, quase em frente ao Batuque da Mãe Zulmira,  correr pela Rua São Benedito, no Morro da Liberdade, puxando meu carro compactador ou empurrando aro de bicicleta na alegre companhia de João Couto da Silva. No Grupo, gostava de me acompanhar do colega Roque de Almeida Lima, porque o admirava muito! Ele era um exímio pintor em sua adolescência!


Manaus era emoldurada por um ar de tranquilidade, sem violência, assaltos, invasões de camelôs nas ruas ou outros problemas sociais graves. 


Famílias ainda se reuniam em calçadas e dormiam com casas de portas e janelas abertas, conversando em cadeiras colocadas nas calçadas, garantidas essa pelo Secretário de Segurança do Governo Gilberto Mestrinho, Stênio Neves.


A Zona Franca já funcionava desde 1969. As Kombis, conhecidas por “Expressinhos”, circulavam em alguns bairros como Glória e São Raimundo. Ônibus de madeira também circulavam, mas eram poucos e ligavam outros bairros, mas a capital do Amazonas ainda era aquela cidade bucólica, despreocupada, sem qualquer pressa, com menos de 300 mil habitantes naquele ano. José Raimundo, teimoso, quando questionava sua mania de andar sempre a pé, dizia: “e eu lá preciso de ônibus ou Kombi para me locomover. Para quê existe catraia?”


As lojas comerciais do chamado quadrilátero central, formado pelas Ruas Marechal Deodoro, Guilherme Moreira, Dr. Moreira, Emílio Moreira e Theodureto Souto recebiam muitos turistas que caminhavam em busca de novidades eletrônicas, encerravam o expediente da manhã pontualmente às 11h30min e retornavam às 14 horas. Turistas apressados em busca de novidades eletrônicas caminhavam apressados, e eram muitos!  As pontes ligando os bairros, encurtando as distâncias, só começaram a ser construídas mais tarde.


Essa era a Manaus de minha infância, calma, tranquila, despreocupada e feliz!



O TEMPLO E OUTRAS ESPERANÇAS



                                          PREFÁCIO

“O TEMPLO E OUTRAS ESPERANÇAS”, de CARLOS COSTA, reúne mais de 20 anos de atividade literária do autor e contempla várias de suas fases. No final da década de 70 e início da década de 80, CARLOS COSTA surpreendeu os críticos literários ao lançar o seu primeiro e único livro de poesias, aos 18 anos, chamado “(DES)Construção..., republicado este ano pela Fundação Vila Lobos, da Prefeitura Municipal de Manaus, e considerado um marco na literatura do Estado. Carlos Costa foi apresentado ao mundo das letras pelo escritor Danilo Du Silvan, como um grande poeta, mas abandonou a poesia e passou escrever crônicas nos jornais de Manaus.
Carlos Costa é membro da União Brasileira de Escritores e do Clube da Madrugada, em Manaus, é jornalista e assistente social. Em suas obras, incorporou uma linguagem simples, objetiva, romântica, filosófica e social, procurando retratar épocas, momentos, sentimentos, questões sociais e histórias passadas em sua infância. Com seu último livro O HOMEM DA ROSA, Carlos Costa começou a escrever introspectivamente, buscando respostas para o sentido de valores postos à sociedade e questionando esses mesmos valores. Em O TEMPLO E OUTRAS ESPERANÇAS, narrado em primeira pessoa, que questiona a razão a existência da vida, em A ESPERANÇA, que questiona o sentimento de felicidade. O autor porém, revela-se amazônico no texto machadiano O TESTAMENTO e mostra a dureza da vida dos nordestinos que desbravaram o Amazonas em busca do látex.
Carlos Costa é um escritor que busca na simplicidade de seus textos uma harmonia com o todo, sem se importar muito com fórmulas literárias, regras, conceitos ou pré-conceitos. E tudo isso está presente em O TEMPLO E OUTRAS ESPERANÇAS

Os Editores – SP

OUTRAS OBRAS DO AUTOR:

“(DES)Construção... (poesia)
UM POUCO ACIMA DO CÉU (DA BOCA), contos e poesias
CARLA, CARLA E OUTROS CONTOS DA TERRA (contos)
CRÔNICAS COMPROMETIDAS COM A TUA VIDA (crônicas)
CRÔNICAS DE UMA POESIA INACABADA (crônicas)
O CAMINHO NÃO PERCORRIDO – A TRAJETÓRIA DOS ASSISTENTES SOCIAIS MASCULINOS EM MANAUS
O HOMEM DA ROSA (crônica poética)

“Quando eu era criança, minha avó me contou uma fábula dos cegos e o elefante. Três cegos estavam diante do elefante. Um deles apalpou a cauda do animal e disse:
- É uma corda.
O outro acariciou a pata do elefante e opinou:
-É uma coluna.
O terceiro cego apoiou a mão no corpo do elefante e adivinhou:
-E uma parede.
Assim estamos: cegos de nós, cegos do mundo.”

Eduardo Galeano (escritor)

A ESPERANÇA

Depois daquele morro que se avista à frente, cercado de verde por todos os lados, e que ao fundo possui um lago tranqüilo, existe uma cidadezinha, construída há muitos anos, que insiste em permanecer no mapa. Dela, hoje, poucos se recordam com precisão e são raros os que dela sabem o nome – Esperança.. Esse nome tem uma origem curiosa e ninguém afirma ao certo se o nome nasceu com a cidade ou se passou a existir desde que descobriram uma antiga moradora, talvez a última que insistia em permanecer lá.
Durante muitos anos aquela cidade viveu da esperança de um trem maria-fumaça que teimosamente passava por lá. Trazia notícias da cidade grande, gente curiosa também. Levava além do barulho ensurdecedor da fricção das rodas do trem com os trilhos e do apito estridente, lágrimas teimosas dos que ficavam. Também levava acenos de braços cansados, de mãos que abanavam, chapéus e de braços longos que seguravam lenços brancos.
Tudo era motivo de tristeza: a chegada de alguém e a partida de outrem. A chegada era triste. A partida era triste para os que ficavam. Os que chegavam da cidade grande se deparavam com uma cidade calma, pequena, onde o tempo não passava e onde as coisas pareciam querer se repetir.
Com a desativação da linha de trem,a cidade foi perdendo a razão de existir e as pessoas começaram a ir embora. A rua principal estava deserta, o cemitério  estava abandonado e a igreja não abria mais. Era uma cidade quase deserta, não fosse a existência de uma única moradora que restavam em Esperança – se é que esse é o verdadeiro nome da cidade.
Na antiga estação, uma senhora de grande idade olhava todos os dias o relógio que marcava a chegada do trem. Curiosamente o relógio estava marcando onze horas, exatamente o horário da chegada e, talvez, a hora que marcou a sua última viagem.
- A senhora mora sozinha aqui? – perguntei, sem esperar uma resposta convincente.
- Não, eu não moro – respondi.
- Você também veio esperar o trem?
- Que trem?
- O trem que todos os dias vêm aqui me trazer notícias da cidade!
- Não há mais trem aqui. Ele deixou de vir aqui há muito tempo.
- Como não há mais trem aqui? Todos os dias eu o vejo chegar. Ele traz pessoas e leva pessoas daqui.
- A senhora espera alguém em especial?
- Sim. Eu espero a Esperança!
- Quem é Esperança?
- Esperança? Você não conhece a Esperança? De onde você veio que não conhece a Esperança?
- Desculpe-me, senhora, mas eu não sei quem é Esperança!
- Todos aqui conhecem a Esperança. É ela quem nos mantém vivos.
- Ela é médica do lugar?
- Ela é mais que a médica do lugar. Ela é a vida desse lugar. Se não fosse a Esperança nós não poderíamos viver!
- Afinal, senhora, quem é a Esperança?
- Ela é quem nos guia, mas faz acreditar no futuro, nos faz pensar em coisas melhores...
- Continuo não entendendo quem essa pessoa que a senhora espera tanto.
- Desculpe moço, mas agora tenho que ir...
- O que foi? O trem já chegou?
- Você não o viu? Ele passou e nem parou...
- Não parou por quê?
- Ora, moço, como você é estúpido. O trem não parou porque eu estava falando com você e, por alguns momentos, você me fez esquecer a Esperança...e é sempre assim. Se a gente esquece a Esperanças, as coisas passam  em nossa vida e nós nem as sentimos.
A senhora virou-se costas, caminhou rápido e desapareceu naquela cidade que parecia fantasma.
E eu fiquei sem conhecer a Esperança, ou melhor, eu também perdi a Esperança! Mas Deus ainda me mostrará a esperança!


SONO PROFUNDO

                   A lua cheia clareava os caminhos de um lento que atravessava a rua, como a um beco, desviando-se das poças de água  deixadas pela forte chuva que caíra pó toda a tarde.
                  O brilho da lua refletia na água os suaves e precisos movimentos daquele gato, até desaparecer por trás de uma enorme lata de lixo, levou-me a pensar na suavidade de Yamille.
                  De tão compenetrado que estava pensando nela, assustei-me quando o silêncio da noite foi quebrado por um carro que entrava na garagem da casa.
                  Do segundo andar, no escritório, tinha uma privilegiada visão de tudo e sabia que no andar de baixo ficava o quarto do senhor Monteiro. Foi aí que eu vi a entrada da senhorita Yamille, em passos lentos.
                 Ela teve o cuidado de descalçar os sapatos para subir os degraus da escada de madeira de lei que dava para o interior da casa. Do lugar em que eu estava, longe da escada de madeira que dá para o segundo andar, senti o odor agradável  de seu perfume e me imaginei nos seus braços; ela nua, sendo possuída por mim.
               O senhor Monteiro, com quem eu tinha conversado por todo o dia, falou-me de Yamille, uma aluna sua exemplar. Falou-me de uma forma terna e deixou-me transparecer uma certa paixão.
               Mesmo sem conhecê-la, por não fazer parte da minha turma de literatura, imaginei-a sendo possuída por mim no banheiro da faculdade.
              - Vem, Yamille, vem...tire a sua roupa. Entre nesse banheiro...aqui mesmo. Vamos rápido. Vem...senta em cima...isso mesmo, mexe mais...está gostoso...ai...ai...ai – pensava eu, sozinho.
               Fui despertado desses  pensamentos quando ouvi a porta do quarto do senhor Monteiro sendo aberto. Yamille estava entrando. Eu sabia.
              - Não, não há paixão. Eu tenho mais de 50 anos e ela agora é que vai fazer 23...- Era o senhor Monteiro tentando explicar-me a relação dele com Yamille, quando da nossa conversa no decorrer da tarde.
              Eu preciso explicar como vim parar na casa do senhor Monteiro.
              Ele é meu professor de literatura. Logicamente, eu já sabia que ele namorava Yamille. Como eu sabia? O que não se sabe pelos corredores de um campus de faculdade?
              Muitas vezes tinha visto Yamille passando rumo ao Departamento de Literatura, no qual o senhor Monteiro era coordenador.
               Certo dia, conversei com o senhor Monteiro que gostaria de conhecer mais as técnicas de produção de um texto literário.
É por isso que estou no escritório dele, cheio de livros interessantes.
                Enquanto eu olhava pela janela, folheava um livro de Stephem King, um mestre dos escritos de horror e fantasia.
               O que tem a ver Stephem  King com a minha história? Sei lá...!
               Voltemos ao que eu dizia antes de explicar-me. Nem sei se tenho que explicar alguma coisa? Eu sou um aluno igual à maioria dos outros alunos; apenas me interesso por literatura.
               Confesso que fiquei exitado só em pensar na Yamille chegando na casa do senhor Monteiro, só para fazer sexo com ele e ir embora depois.
Como deve ser o relacionamento de um professor cinquentão com sua aluna tão nova? Em certo momento de minha vida, pensei ser professor; talvez fosse medíocre. Acho que poderia ter sido um advogado regular ou um médico dedicado como o meu pai ou, ainda, um pesquisador esforçado.
              Mas nada disso conseguir ser. Fiz os gostos da minha e, hoje sou um desconhecido geógrafo que cursa uma disciplina de literatura só porque desejo escrever um livro. Devo confessar porém, que de geografia mesmo eu só conheço até hoje profundamente o corpo feminino.
             Enquanto conversava com o professor Monteiro sobre a arte de produzir um bom texto – assunto, aliás, de que ele gostava muito porque também desejava escrever um livro também e não ser professor – observei uma senhora idosa. Era a esposa dele. Falava pouco, dormia em quarto separado e só falava – e quando falava, era sobre assuntos de cozinha, almoço, empregada, falta isso, falta aquilo – o que faz toda esposa quando não está satisfeita com o casamento. Ela era submissa demais e se afastou quando começamos a falar de literatura francesa – Madame Bovoary, por exemplo. Como entender isso?
           Na condição de hóspede na casa do senhor Monteiro, ouvi o barulho de porta abrindo. Imaginei fantasias minhas com Yamille – um monumento à beleza.
           Ouvi vozes. Não eram as do senhor Monteiro e nem da esposa dele. Quando o senhor Monteiro tocou no nome de sua aluna Yamille, ela saiu de perto.
Yamille, uma morena linda, escultural, pernas grossas, seios médios, bumbum arrebitado, lábios carnudos, andar sensual. Só de imaginar o senhor Monteiro amando e fazendo amor com aquele nonumento era um tormento para mim.
          Exitado e curioso com as vezes que ouvia, desci um degrau da escada. Fui até a porta do quarto do senhor Monteiro e ouvi Yamille dizendo:
          - Vem, paizinho, vem, mete mais.
Ela devia estar nua, implorando para o senhor Monteiro penetrá-la, talvez por trás. Não sei.
         - Beije-me paizinho...assim...tá gostoso...isso, paizinho,  Chupa...gostoso...
- Deixa eu te chupar...sou sua filha querida!
          Fiquei espantado. O senhor Monteiro, tão moralista em sala de aula?
          Ouvi passos na escada. Yamille estava descendo. Corri para o sofá e sentei.                         Depois deitei e fingi que estava dormindo. Não queria que ela me visse.
          Adormeci meu sono profundo, sonhando com Yamille.

TESTAMENTO – NOVELA AMAZÔNICA

              Deixo para trás a saudade e alguns hectares de terra. Não bem só isso: deixo também alguns poucos amigos, umas poucas cabeças de bode que teimam em permanecer existindo, uma cabana mal construída que eu chamo de lar e uma terra miserável que nem sei o porquê de existir. Não dá nada. Não produz nada. Deixo também uma mulher que me abandonou. Os filhos vivos. Os filhos mortos. E muitas lembranças. Mas do que isso, nada tenho para deixar porque até a dignidade eu já perdi.        
            Mas não haverá ninguém para receber minha herança.
 Inicialmente, desejo apresentar meu existir a vocês, embora não tenha certeza de um existir, afinal, viver miseravelmente como eu vivo não é existir. É ser teimoso por natureza. Chamo-me Juvenal, Juvenal do seu Zé do Bode porque meu pai criava bodes e assim fiquei conhecido, nascido no Nordeste. Ele, meu pai,  já morreu. Que Deus o tenha ou o diabo que o carregue.
Tenho poucas lembranças do meu pai, porque a morte veio buscá-lo quando eu ainda  era pequeno. Dizem que ele morreu de impaludismo. Confesso que nem sei o que é essa doença que deram o nome de impaludismo. Ela existe mesmo ou é mais um nome inventado?
Durante a II Guerra Mundial, navios atracaram no porto de Fortaleza. Muitos nem se davam a esse trabalho e paravam no meio do mar. Soldados desciam. “Ou você vai cortar seringa no Amazonas ou vai participar da guerra”, diziam os soldados. Diante dessa “gentil oferta do Governo Vargas” sobraria  alguma outra  opção?
Quando tinha meus seis anos, caminhava seis quilômetros até um poço de água. Era dele que nós tirávamos a água para beber, cozinhar, dar aos bodes, tomar banho e para suprir outras necessidades também.
Cresci nessa rotina: apanhar água no poço e ver os bodes morrendo de fome ou de sede. De manhã, tirava leite de cabra para beber. Mas isso era raro. As cabras passavam tanta fome e sede que nem leite davam direito.
Como disse, tenho poucas lembranças do meu pai.
Mas sei que ele fez de tudo para que eu tivesse um futuro melhor do que o dele e não morrer de empaludismo. Analfabeto de pai e mãe, dizia que eu tinha que aprender a ler e a escrever. Aprendi muito pouco, só dá para o gasto. Não tenho medo de dizer que isso que você está lendo foi revisado. O professor disse que tentaria aproveitar minhas idéias e nem sei se ele fez isso mesmo porque, embora tenha freqüentado escolas, aprendi a ler muito pouco. Se ele mudou alguma coisa me desculpem, porque é culpa do revisor.
 Quando meu pai morreu, lembro apenas que chorei muito e tive que assumir a casa porque eu era o mais velho. Meu pai foi enterrado no quintal mesmo. Colocaram-no dentro de uma rede e depois na cova. Nem caixão fizeram. Minha mãe chorava muito e foi amofinando, amofinando, até que morreu também. Fiquei só no mundo porque todos os meus irmãos morreram também, acho da mesma doença do meu pai.
Bem, não é verdade que fiquei totalmente só no mundo. Conheci uma garota bonita quando ia buscar água. Maria. Ela se chamava Maria da dona Maroca. Acho esse negócio de nome uma coisa esquisita. Nome não serve para nada. O nome do pai dela eu nunca soube. Sei que ela teve um pai mas nunca o conheci. Aliás, eu já disse o nome da minha mãe? Já morreu mas se chamava Maria também, igual ao nome da Maria que conheci. Ela tinha somente 16 anos e eu 17.
Decidimos nos mudar para o Amazonas. O ano era 1906. Época boa para se produzir o látex. Não fui para guerra, mas fui produzir látex para o Exército.
Depois de quase um ano de viagem, cheguei eu e a Maria no Amazonas e nos casamos.    Tivemos cinco filhos. Dois morreram logo depois do nascimento.
Só vim conhecer um padre depois dos meus 20 anos, quando casei com Maria. Era assim: um filho morria e a gente fazia logo outro. Lembro que meu pai dizia: filho, onde come um comem dez. Mas não concordo mais com isso. Continuo miserável.
Aportei em Manaus sem dinheiro e com dívidas.
Procurei trabalho. Só tinha nos seringais. Estou agora com 21 anos, um de casado e já pareço velho. O seu Richard, um inglês, pagou todas as nossas despesas de viagem. Dizem que em Manaus vou melhorar de vida. Os homens andam bem vestidos, com terno de linho branco e chapéu na cabeça. Falam coisas estranhas. É uma língua que não entendo. Acho que é francês ou inglês, ou alemão não sei ao certo. Acho que é tudo junto e misturado.
Decidi enfrentar a vida e aceitar o emprego oferecido pelo senhor Richard, no seringal dele. Na hora do embarque, Maria chorou. Meus filhos também. “Vou voltar logo”, gritei, mas acho que ninguém me ouviu devido ao barulho do motor.
Navegamos vários dias. Paramos em um lugar isolado. Tudo era selva. Fiquei espantado ao saber que a maioria era do Ceará. Tinham vindo como “Soldados da Borracha”. Acreditaram nas promessas do Governo Federal. Eu não: acreditei somente no emprego do senhor Richard.
Tinha-se que caminhar para dentro da selva. Cortar pés de seringueira. Chovia muito no meio da selva. Trazíamos toda a produção para a margem do rio. O motor passava recolhendo tudo.
Passei seis anos no seringal. Muitos morreram. Nunca recebi o suficiente. Trabalhava mais de 18 horas por dia. Durante esse tempo, vi minha mulher, a minha Maria e meus filhos apenas uma vez. Ela estava morando na casa do seu Richard e parecia bem. Estava forte e corada. Seu Richard não deixou Maria ficar comigo, deitar comigo. Disse-me que ela estava indisposta. Trabalhava muito. Seu Richard prometeu que eu a veria antes de voltar para o seringal. Não cumpriu a promessa e eu voltei. Nem me deu um abraço. A vi de longe, apenas. Mas notei que ao lado dela tinha um menino louro. Acho que era colega dos meus filhos. Pareciam todos bem, mas estranhos.
Abandonei o seringal. Voltei para Manaus em 1912. Nesse período, não ganhei nada. Continuo devendo. A cidade, antes bonita e alegre, estava abandonada. Seu Richard tinha ido embora. Encontrei minha Maria. Ela estava morando em uma barraca imunda, no bairro dos Remédios. Culpavam os malasianos pela nossa crise. Como iria sustentar a nossa família? A cidade, antes bem desenvolvida, estava falida.
Tentei voltar para o seringal. Não deixaram. Diziam que a borracha não tinha mais compradores. Um tal de Henry Vicham havia roubado nossas seringueiras. Tudo foi parar na Malásia. Não sei se isso é verdade. Sei que agora sou chamado de arigó porque sou nordestino. Não é verdade. Sou um trabalhador e fui abandonado.
Os navios sumiram do porto. As ruas ficaram desertas. Só se vê nordestinos pela rua, perambulando. Fiquei sabendo que a minha Maria não era mais a mesma. O menino lourinho que eu vira era filho dela com o seu Richard..
Tentei me matar. Enfiei uma faca no peito. Levaram-se para o Hospital. Não tinha médico e nem remédio. Comia um dia e o outro não. Chegou o ano de 1942. O mundo estava novamente em guerra e afundaram um navio nosso. 657 pessoas morreram. Tenho certeza que haviam cearenses entre os mortos. Não me deixaram lutar.
Voltei aos seringais. Os japoneses tinham invadido os seringais no Oriente. Eu não sabia que existia isso. Fui  contratado por uma Companhia de Desenvolvimento da Borracha. O dinheiro voltou a aparecer. Os navios também reapareceram.
Maria continua morando em Manaus. Meus filhos vieram comigo para o
Seringal, só não o lourinho que é filho do seu Richard e não meu.
Hoje chegou navio. Soube que o Ceará continua seco e miserável. Companheiros meus voltaram. Outros chegaram para cortar seringueiras. Eram os soldados da borracha. A produção fracassou novamente. Uns americanos vieram como mandantes. Não entendiam nada de produção em floresta.
Um tal de doutor Figueiredo Rodrigues que era inspetor de saúde no porto de Manaus somava os mortos por empaludismo. Manaus tinha crescido muito, mas continuava pobre. Não haviam farmácias ou médicos. O interior estava abandonado.
Tinha um juiz que cuidava dos pobres.
Fui procurar Maria. Desejava saber notícias dela. Encontrei-a com um homem de cabelos loiros. Já tinha outros filhos. Desejava levá-la para o Nordeste. Mas cada filho era de uma cor diferente. Dos cinco filhos que tive com Maria, quatro morreram no seringal. Só ficou o mais velho. Até o Richard, nome da criança loira que eu vi quando voltava para o seringal, havia morrido também. Tinha encontrado minha Maria, não em um poço, mas nas ruas de Manaus
Decidi voltar para o Nordeste, sem nada também. .
  A idade não me permite mais grandes sonhos. Foi uma viagem mais miserável ainda. Redes por todos os lados. Depois, estrada de chão batido. Homens jovens, crianças, mulheres jovens dividiam o ônibus caindo aos pedaços. Era o melhor e era o que o meu dinheiro podia pagar.
Eram todos nordestinos como eu, regressando do inferno.  A chata de rodas estava cheia de desiludidos e arrependidos. Antes eu era um migrante desiludido com a terra seca. Agora, estava desiludido com a terra, a vida e com Maria. Comi o pão que o diabo amassou. Agora volto para o começo.
Uma chuva forte alcançou a chata. O vento era forte. Muitas pessoas choravam. Morrer não deveria ser tão ruim assim.
Felizmente a tempestade passou. Pensei em Maria. Como ela teve coragem de me deixar assim? Maria foi ingrata. A vida era ingrata. Fugi da seca. Estou mais velho agora, voltando. Não matei nem roubei...
Enfim, cheguei. O lugar parece o mesmo, miserável como antes. Não há água, floresta ou bichos, mas homens estranhos.
Esse é meu testamento: não deixo nada para ninguém. Você não quer o meu herdeiro? Se somente você, leitor, acreditar que toda essa minha estória é verdadeira, posso morrer feliz.

LEMBRANÇAS DE ONTEM
Havia um jardim sem flores em sua infância, cheio de lembranças de campos de futebol, buritizais, areal, cacimbas e muitas árvores. Havia sedução, beleza, gostosas brincadeiras, um limpo e largo igarapé para as tardes de sábado e todo o dia de domingo.
Mas tudo isso desapareceu.
Nada mais restou que pudesse lembrar das alegres brincadeiras dos meninos na sua infância. Do jardim, resultou uma rua escura, fria e sem vida, por onde passam milhares de carros apressados, sem se importarem com a beleza que antes havia ali. Não há mais a calma das pessoas e todos andam com muita pressa, sem tempo para recordar daquele lugar cheio de árvores que formavam um bosque sem flores, mas com magia, beleza e encanto...
As árvores eram os castelos de sonhos de sua infância...
O tempo e o progresso são inimigos da infância. Eles destroem o belo e o transformam do que era simples em moderno, fazendo desaparecer a poesia que existia no canto dos pássaros. Implacável, o tempo lhe tirou a juventude e o fez mais velho. O Progresso o fez para e pensar em como era bela a sua infância naquele lugar que hoje não existe mais.
Onde estão os buritizais de sua infância? Para onde foram os colegas que brincavam de bola na rua até ao cair da noite? Onde estão as árvores que pareciam castelos encantados?
Ele tornou-se escravo do tempo e prisioneiro do futuro, olhando para um passado que não existe mais.
Do igarapé de sua infância, onde alegres meninos e meninas banhavam-se sem expor todo o corpo, restam apenas as lembranças dos mergulhos e das brincadeiras inocentes. Não é mais possível lembrar do tempo em que os garotos de sua infância atravessavam o igarapé nadando, apostando nada, tudo em nome de um prazer que nenhum deles imaginou que um dia desapareceria.
Onde estão as cacimbas de sua infância que águas limpas lhe forneciam? Onde estão as areias por onde pernas e pés infantis jogavam bola às tardes?
Era assim o jardim de sua infância!
Não havia progresso, mas todos os meninos eram felizes. Brincavam com bola de gude, cangapé, pião, manja, trinta e um alerta...As árvores eram os esconderijos...Tudo isso faz parte do passado...
Onde brincam as crianças de hoje? Com que brincam as crianças de hoje? Não de escutam mais os barulhos das roldanas, nem correm mais os garotos de sua infância, empurrando aros de bicicletas, pneus velhos ou puxando latas de leite cheias de areia, imitando carros imaginários.
Hoje, carros velozes e homens apressados passeiam pelo bosque sem flores de minha infância. Não existe mais o bosque sem flores...mas morreram as lembranças felizes da infância. Só as lembranças felizes,  o progresso e o tempo não conseguiram destruir.


O EMPRÉSTIMO

- Bom dia, seu gerente! – foi dizendo ao entrar na agência bancária, logo que esta abriu. Ele era gordo, alto e gostava de usar uma roupa esporte.
- Oh, é o senhor, bom dia, como tem passado? A que devo o prazer de sua ilustre visita a essa hora tão cedo da manhã...? – quis saber o gerente, estendendo-lhe a mão, afinal, o cliente era ilustre demais. Ele movimentava mais de 49,9% das ações do banco por dia.
- Estou precisando de um empréstimo...
- De quantos milhões...? – adiantou-se o gerente concluindo. – Não há valor que o senhor queira que o banco não lhe empreste...
- Milhões, quem falou em milhões? Eu apenas queria 500 reais para completar um pagamento ali na esquina...Eles não aceitam cheque e a máquina de cartão está sem funcionar.
- Ah, mas se é só isso não precisa fazer empréstimo. Eu mesmo lhe dou e depois o senhor me paga ou, então, o senhor pode sacar de sua conta sem problemas, sem baixar suas aplicações. Depois, a gente resolve isso!
- Não, o senhor não entendeu. Eu quero um empréstimo mesmo.
- Eu lhe empréstimo do meu...
- Não...eu quero fazer cadastro e deixar uma garantia...
- Mas... mas...mas... – gaguejou o gerente.
- Nada de mas, mas...
- Bem, já que o senhor insiste...
O gerente, apressado e sem entender nada, foi conversar com o seu auxiliar.
- Acho que ele está maluco. Tem 49,9% de todas as ações do banco e quer fazer um empréstimo de somente 500 reais – comentou o gerente com seu auxiliar que, de imediato, sugeriu fazer o que o cliente desejava.
O gerente pediu ao cliente para aguardar um minuto e mandou preparar toda a papelada conforme exigência feita, embora tivesse insistido com o cliente que nada daquilo seria necessário para emprestar um valor tão baixo. Mas o cliente, irredutível, avisou-o:
- Olhe, eu faço questão de garantir o empréstimo deixando um bem...
- Mas...mas...mas... – voltou a gaguejar o gerente.
- Pegue aqui os documentos da minha Ferrari Conversível de 700 mil dólares. Coloque o meu carro como garantia. Se em 30 dias eu não vier quitar o empréstimo, o banco pode ficar com ela, vende-la ou coloca-la em um leilão...
- Mas, senhor, esse carro vale uma fortuna... – disse o gerente.
- Não aceito discussão... meu carro será a garantia! – Ah, mais uma coisa: desconte logo os juros do empréstimo e tudo o mais que precisar, exigiu o cliente mais rico do banco.
Depois de tudo pronto, papelada assinada, o cliente entregou a chave do carro e determinou:
- Coloque meu carro guardado em poder do banco...afinal, eu posso morrer em segundos e o senhor não terá como receber o valor do meu empréstimo...
- Mas...mas...mas...
- Nada de mais...mais... Mande guardar o meu carro.
O gerente obedeceu prontamente e, minutos depois, voltou informando que o carro tinha sido guardado por ele próprio na garagem vigiada do banco, para não acontecerem danos.
O cliente, alegre, recebeu o dinheiro. Em seguida, pediu o telefone ao gerente e ligou para a esposa:
- Alô, amor...pronto, meu carro já está na garagem do banco. Podemos viajar tranqüilos, sem medo de termos o carro roubado

NO PAÍS DAS LUZES

Caminhava ele de cabeça baixa por uma rua escura, vindo de um lugar distante, onde prestara auxílio a uma pessoa  que  necessitara, quando foi tomado por luzes. Um espetáculo espantoso.
Era uma festa extravagante, que estava um pouco acima da altura de sua cabeça e um pouco abaixo do céu.
Tudo era esquisito.
A rua escura não era mais escura: eram ruas claras, mas pareciam abandonadas de habitantes.
Atentando um pouco melhor, ele percebeu que as luzes um pouco acima de sua cabeça se moviam em velocidade e não se tocavam. O que eram aquelas luzes? Elas fervilhavam, surgiam de todas as partes, andavam, paravam...De repente, todas as luzes se encaminharam para um só lugar e pararam em volta de uma luz maior, mais brilhante...
- À ordem! – Era uma ordem. Mas quem dera a ordem? Só estava ele ali, parado, sem entender nada... – À ordem, repetiu a  voz. Mas de quem era aquela voz?
Todas as luzes se perfilaram e ficaram paradas. Era um silêncio sepulcral.
- Estamos aqui para julgar a nossa irmã, Luz da Manhã,  que não cumpriu fielmente seu dever! – Era novamente aquela voz, vinda do meio daquelas luzes.
- Sou inocente meu Rei e Senhor!
- Inocente? Como inocente? Tinhas uma missão...Se o vento não te permitiu cumprir a tua missão, deverias ter procurado ajuda! Tua pena é ficar em total escuridão durante 365 dias, durante os quais tens que meditar sobre o seu dever!
Imediatamente a luz apagou e ninguém questionou.
Ele, então, percebeu que estava no reino das luzes, onde os moradores eram sempre luzes e estas luzes tinham uma missão a cumprir. Se não cumprissem, deixariam de existir porque no reino das luzes, a ordem existia. As luzes eram disciplinadas e suas chamas não eram nem maiores nem menores que a necessidade. Tanto as grandes quanto as pequenas luzes submetiam-se ao julgamento de um tribunal instalado no meio da rua. Condenado à morte, réu era imediatamente apagado.
Curioso, ele notou que depois do julgamento, todas as luzes voltaram para o local de antes, clareando as imensas ruas. A luz condenada foi substituída por outra imediatamente e a claridade não foi alterada. Ninguém discutia o julgamento, não aparecia um só advogado entre as luzes para apelar da sentença. Não aparecia uma só luz-deputada para protestar...
A disciplina política no reino das luzes, como o homem observou, era perfeita, invejável, modelar e inquestionável.
E  é lembrando desse episódio, vivido por aquele homem e aquela luz, que não entendia nada. Eu pergunto, às vezes, a mim mesmo: se o Brasil fosse como no reino das luzes, não estaria, já, vivendo totalmente no escuro ou talvez, já teria sido devorado por um grande incêndio.

O ENTERRO


- O carro bateu n’ele – foi o que consegui ouvir. Era a voz de um garoto franzino que descia a ladeira chorando, puxando um carrinho de madeira.
O carrinho de madeira era, na representação inocente daquele menino, um impotente carro fúnebre transportando alguém importante para a sua última morada. Ele caminhava só com o defunto, a vítima, o cadáver amarrado ao carrinho de madeira, com parte do corpo aparecendo. Rumava para o quintal de uma residência pobre, de madeira simples, sem portas e sem janelas..
Era apenas uma criança. E chorava. Era uma criança comum transportando um carrinho de madeira que transportava um defunto importante para sua última morada. Ninguém prestava atenção aos passos da criança que chorava.
- O carro bateu n´ele – repetia, como que se antecipando a qualquer pergunta que lhe viessem a fazê-lo. Mas não havia ninguém. Só eu a observar aquela tristeza imensa de um garoto infeliz e  comum.
E lá se ia a criança rumo ao quintal transportando o seu melhor amigo, o seu cachorro de estimação rumo à sepultura. Havia lágrimas no rosto da criança. Havia um choro sentido, abafado, doído, talvez por lembrar-se dos momentos alegres com o seu animal. Não era um cachorro de raça pura, mas que importância tem isso? Era um pequinês, ou quase isso, mas para aquela criança era apenas “o seu melhor amigo”.
Eu os vi juntos por muitas vezes. O cachorro – não sei se nem nome tinha, brincava alegremente, corria, pulava, latia, obedecia aos comandos daquela criança que o tratava bem. E agora lá se ia a criança, transportando o seu melhor amigo.
- O que foi Chandi? – Era um outro garoto da mesma idade, uns sete oito anos, talvez querendo saber o porquê de tanto choro naquele rosto.
- O carro bateu n’ele – Era só o que respondia.
O companheiro, compadecido, ajudou-o a transportar o carrinho.
Em um dado momento, o carrinho tombou para o lado e o corpo do cão caiu. Suas patas, que estavam para fora do carrinho, ficaram sujas de lama. O carrinho foi desvirado e, com muito carinho, o menino abraçou-o pela última vez, limpou suas patas e continuou o caminho.
A cena, patética, parecia filme americano (aliás, até hoje não entendo porque sempre chove quando os filmes americanos apresentam cenas de enterro), mas estava faltando o padre ou alguém que pronunciasse “viestes do pó e para o pó voltarás”, e depois mandar descer o defunto sob um grande silêncio enquanto as pessoas de casacos negros jogassem flores e a pobre criança ficasse olhando sem  entender nada.
Mas não era um filme americano e nada disso havia. Não havia padre, pastor, pessoas, flores nem urna mortuária. Havia apenas um garoto e o seu amigo cão. Ninguém estava ao seu lado, corando a sua dor. Era uma dor só sua e de mais ninguém. Havia apenas a chuva, como nos filmes americanos, uma chuva fina de uma segunda-feira qualquer de um dia de um mês qualquer.
Era o menino, seu cão, a chuva, o carrinho, a sepultura improvisada no quintal da casa, última morada para o seu fiel e inseparável amigo. E as pessoas que passavam não entendiam o choro daquela criança.

A VIDA É UM CASTELO DE AREIA

A vida ,  um castelo de areia construído à margem do mar...
Às vezes, construímos o castelo sem imaginarmos que a onda do mar pode destruí-lo...E a onda vem forte; e a onda vem forte; e a onda a destrói...E quando vai embora, tudo volta ao normal. Menos o castelo, porque ele foi junto com as ondas do mar. Depois, a onda retorna. Mas o castelo que construímos na areia nunca mais voltará.
Se construirmos outros, outros serão destruídos por outras ondas...E a vida é um castelo de areia construído à margem do mar...Assim é a vida. Somos construídos pelos nossos pais, mas eles não passam de onda do mar, em forma de monte, chega rápida e nos leva. E nunca trás alguém de lá para  nos dizer o que há além do horizonte...
Para que nascer se o nosso destino é a morte? Para que construir castelo de areia se a onda o destrói? Para que ser filho se não se poderá, talvez, ser pai?
E  a vida é um castelo de areia construído à margem do mar...Não devíamos morrer porque a vida é sem sentido. É rumo em direção de qualquer coisa; direção a algum lugar que tenha um sentido. E a vida é um castelo de areia construído à margem do mar...E a própria matéria é uma ilusão. As ondas do ma levam a matéria. E o próprio corpo é uma ilusão: é destruído pelas ondas do mar.
Devemos, portanto, viver de duas maneiras: uma vida vivida e uma outra vida pensada. E a única vida que temos está dividida entre a vida vivida, verdadeira, e a vida pensada, ilusória. Contudo, é impossível dividi-las. É preciso existir a verdade, mas a ilusão é necessária para podermos viver pensando que somos eternos e que as ondas do mar não nos levarão não nos destruirão, não nos transformarão em nada.
. Se construirmos o castelo de areia, é porque esperamos a onda...esperamos a morte. Mas, se queremos viver, não devemos construir castelos, mas a ilusão é necessária para que a vida tenha sentido e nós busquemos na morte a explicação para a vida.
E depois, quando a onda retornar, por certo nos trará de volta o castelo, porque, afinal, a verdadeira vida é um castelo de areia construído à margem do mar. Mas do mar do nosso próprio coração!


ÀS TRÊS DA MADRUGADA


Ah, sim, ainda me resta o telefone. Não paga Imposto de Renda, paga taxas, consumo, impulsos, embora algumas vezes exagere. Ele não fala inglês, não conhece ninguém no exterior, mas uma vez apareceu uma ligação de 30 minutos para a terra do Tio San. Jura que não ligou, mas ninguém acredita,  nem a companhia telefônica. Disseram que ele tinha cara de americano. Ou será que pensaram que falava inglês. Não falava nada!
Pois bem, ao telefone, então. Deve haver alguém acordado às três horas da manhã, sem fazer nada, com insônia, preocupado em saber se o dólar vai subir ou vai baixar, coisas assim...
Como ele pensava, tinha alguém acordado.
- Alô, quem está falando? – perguntei.
- Aqui sou eu, e aí?
Desligou. A pessoa devia estar no escuro, como ele.
- É no escuro que se praticam as desgraças da vida – pensou.
Ele não tinha luz em casa. Não tinha gelo, água fria, televisão, condicionador de ar ligado...nada. Total silêncio.
- Sim, aqui sou eu. Olha, eu estou no escurol Você também. Veja que coisa engraçada: eu estou no escuro, à luz de vela e sob as bênçãos da lua. Você tem vela aí? Não vê a lua?
Desligou novamente. A pessoa do outro lado da linha não falava nada. Ou será que não havia ninguém do outro lado, às três horas da manhã? Também, que diferença isso faz para alguém que está sozinho, no escuro?
- Se eu fosse uma mulher, todos iriam me atender ao telefone às três horas da manhã! – pensou,
O banheiro, onde é o banheiro? Se ao menos ele fumasse, acenderia um elétrico! Ou tem fósforo?
- Pelo visto, estou urinando dentro da geladeira. Ou será da pia da cozinha? Esse barulho é esquisito!
E se tivesse passado algum programa bom na televisão? O discurso do presidente da república, por exemplo, falando do dólar? E se sua vizinha do apartamento ao lado estiver chegando agora, no escuro? Ele não a verá entrando no quarto, trocando de roupas, nuazinha!
A lua, a lua está linda! Lua cheia. Há tempos que ele não via lua cheia. Será que vocês já repararam como é linda a lua cheia? É linda, romântica, sensual. Deita seus cabelos dourados sobre os nossos rostos, diz palavras românticas e nos faz crianças!
- Ah, lua, como eu gostaria de descansar neste momento em teus braços!
Ironia. Somente agora, depois de tantos anos morando naquele apartamento do terceiro andar, consegui ver tamanha beleza na lua. Ela sempre esteve ali, em frente a sua janela às três horas da manhã...
A luz da lua clareou todo o quarto, às três horas da manhã e ele dormiu calmamente, com o telefone fora do gancho...!

EM BUSCA DO ALÉM

Em sua imaginação, passou longo tempo visitando aquele lugar. Distante, por certo, mas cheio de mistérios. Havia uma fumaça densa e era impossível divisar tudo. Uma luz, trêmula pelo vento, clareava uma rua longa, com poucas casas.
As portas rangiam, mas não havia ninguém que ele pudesse divisar. O vento soprava frio e havia um silêncio sepulcral, de meter medo. Parecia que estava só, mas era impossível saber. Era como se alguém o estivesse olhando, de todos os lugares.
Entrou na primeira casa e não havia ninguém. Parecia um salão de festas. Os ornamentos estavam no mesmo lugar e copos cheios de bebidas descansavam sobre  indicavam que há muito tempo ninguém entrava naquele lugar,
Ele pensou que estivesse dormindo, sonhando, porque de repente ouvira um barulho, muito barulho. Assustou-se e tentou ver alguém, mas não conseguiu. Ouvia só o barulho!
Da janela, alguém olhava surpreso. Era um homem estranho, velho, parecia louco. Outros apareceram. Todos  maltrapilhos. Eram loucos, por certo.
- Quando o trem vai passar, várias pessoas vão perde-lo, se não se adiantarem!
O que disse isso estava na janela, olhando para ele, fixamente. Sentiu medo. Assustado, saiu correndo rumo à rua para ver o que estava acontecendo. Todos, em coro, começaram a rir, principalmente quando colocou seu casaco no braço e tentou abrir o portão. Mas, de onde surgiu o portão? Não havia portão antes. Já não sabia mais onde estava e nem via mais a pessoa que tinha anunciado o trem. Não havia mais ninguém na rua. E o silêncio tinha voltado. Tão rápido como apareceu o barulho.
- O que fazes nesta cidade, meu rapaz?
Outro susto. Essa voz surgiu do lado esquerdo. Virou-se e viu uma senhora que vergava com o peso dos anos. Também era maltrapilha, com o aspecto de louca.
- Onde estou? – quis saber, mesmo não esperando uma resposta explicativa.
- O que fazes aqui nesta cidade...? – pergunta à velha maltrapilha. Ela não entendeu ou fez que não ouviu a pergunta e ele, então lhe respondeu.
- Procuro saber onde fica o além para poder seguir o caminho para descobri-lo!
- Ninguém ainda o encontrou. Pare de bobagem e volta para onde você veio!
A velha maltrapilha respondeu e saiu caminhando. Ainda tentou alcançá-la, mas foi inútil. Ela desapareceu no nevoeiro. Desesperado, confuso, olhando para ao lados e não vendo mais ninguém, começou caminhando cada vez mis veloz até que tropeçou  e caiu...
Depois desse momento, sentiu muitas mãos tentando erguê-lo..  Outras mãos pressionavam-lhe o peito e injetavam ar na sua boca. Ouvia mais vozes, muitas vozes, mas não via nada. Estava tudo escuro, muito escuro, até que umas luzes coloridas passaram a chamá-lo para algum lugar. As seguiu, sem saber onde as levariam.
- Acho que ele está melhorando. Já sinto sua respiração normal!
Ouviu quando uma luz conversava com outra, mas sem entender que resposta dera. Abriu os olhos e assustou-se: pessoas, muitas pessoas o olhavam assustadas. Estava em uma maca de hospital.
Será que esteve no além?
Jamais saberá.

CONVERSA PARA NINGUÉM

Óculos baixo, na ponta do nariz, ar de intelectual de fim de semana, sentou-se ao lado de um homem que fumava charutos e, sem cerimônia, com de bêbado, perguntou:
- Onde está:
 a beleza?
Sem dar muita importância à objetividade da pergunta, ele lhe respondeu:
- Certa vez, estando no Chile para uma manifestação de protesto contra a ditadura de Pichochet, o escritor Eduardo Galeano,, introspectivo, olhando para as montanhas e vendo ao longe o pôr-do-sol,  se perguntou:
- Seria bela a beleza, se não fosse justa? Seria a justiça, se não fosse bela?
Insatisfeito com a resposta, questionou novamente:
- Onde reside a beleza? Eu não a vejo. Nem quando olho a vida...
O homem, calmamente, falou:
- Eis a questão fundamental do teu pensamento: acreditas na beleza da justiça porque a acreditas justa, meu amigo.
O homem, soltando um pouco de fumaça do charuto, pediu ao que lhe interrogava:
- Pensemos...
- Pensar? Custa-me neurônios...Não posso pagar!
- Você já ouviu falar em Estado?
- Não...
- Eu lhe explicarei – disse o homem que fumava charuto. E se pôs a falar:
- Hoje, carregando nas cosas muitos anos de vida, se o Estado, esse Leviatã tão poderoso e destruidor, formado pela imposição dos mais fortes, é justo.
- Nada entendo de Estado. Não posso lhe responder...
- E o Direito, meu caro amigo, criado pelo Estado poderoso, é justo e, se o for, é belo? Se for belo, será que tem a mesma magia de um pôr de sol no nosso Rio Negro? Ah, meu caro amigo, como me doem essas indagações!
- Mas eu só pretendo saber onde está a beleza!
O homem que fumava cachimbo não lhe deu ouvidos e continuou:
- E o Processo, esse que também condena inocentes e absolve culpados, idealizado pelo Estado, incorporado pelo Direito e executado pelos homens, é perfeito?
- Senhor, não me leve a mal, mas a única coisa que quero saber é onde está a beleza – irritou-se.
- Noetzsche, onde está você agora? Diz novamente que o homem não pode limitar-se a vegetar. Diz que ele precisa cultivar ideais acima de si próprio, precisa ver luzirem estrelas acima de sua cabeça!
- Senhor, eu não sei quem essa pessoa...esse tal de Niche que o senhor falou. Mas se for seu amigo, diga a ele que a única coisa para a qual busco uma resposta, é saber onde está a beleza!
Sem lhe dar ouvidos, o homem que fumava cachimbo, olhando para o céu, gritou alto, abrindo os braços enquanto fazia um novo discurso:
- Indiscutível é o fato de que a dominação funda-se no saber, no conhecimento da vontade do domínio e do eterno retorno. Este é, também, um assunto que devemos pensar: nós, donos do saber, somos também agentes de domínio?
- O senhor parece zangado! Quer tomar uma cerveja comigo? Eu pago! Eu não quero saber de nada, só não gosto de riqueza. Sou pobre, sou proletário...não é assim que se diz?
Como se tivesse discursando, o homem continuou:
- Falas e pensas em Karl Marx e concordo contigo quando dizes que a história das sociedades humanas nunca foi mais a mesma. É verdade que não falou em Max o seu espírito histórico e muito a inteligência do passado. Sua teoria foi, é e continuará sendo revolucionária e insubstituível para a análise da sociedade. Mas isso foi bom?
- Max, quem é ele? É outro amigo seu? O senhor tem muitos amigos...!
Mais uma vez o homem não lhe deu ouvidos e, como se falasse para uma grande platéia de invisíveis, continuou:
- Pensemos, porém, em outro angulo de visão: qual é, segundo a etimologia, o sentido da palavra “bom”? Ela define “distinção” e “nobreza”, no sentido de ordem social.
- O senhor está querendo dizer que eu não sou bom? Pois eu lhe digo que sou! Não há ninguém melhor do que eu...Só meu pai, que me fez!
- Volto para  Nietczche, para quem o juízo “bom” não emana daqueles a quem se prodigalizou a “bondade”. Ele diz que foram os próprios “bons”, os homens distintos, os poderosos, os superiores que julgaram “boas” as suas ações; isto é, “de primeira ordem”, estabelecendo essa nomenclatura por oposição a tudo  era baixo, mesquinho, vulgar e vilão. Arrogavam-se da sua altura o direito de criar valores e determinativos: o que lhes importava a utilidade! Novamente o nosso pensador diz o ponto de vista utilitário é de todo o ponto inaplicável quando se trata da fonte viva das apreciações supremas que constituem e distanciam as classes sociais. Max, portanto, estava certo e era bom.
- Esse seu amigo “Niche” parece que é gente boa... Onde ele mora?  Mas, senhor, esse negócio de bondade não é comigo não! A gente faz coisas boas mesmo dizem que não prestamos...
O homem parou de falar por uns instantes, olhou para o que estava ao seu lado e ficou pensativo. Depois, calmamente, disse:
-És bom, também por virtude!
Voltou a ficar em silêncio por alguns instantes novamente e interrogou-o:
- Desejas saber se o Estado tem algum compromisso real para com o seu povo e se o Poder Público tem atuado com a preocupação de alcançar o bem comum?
-Já que o senhor não responde onde posso encontrar a beleza, eu o ouvirei, embora não entenda nada...
- Tentarei responder-te com outras idéias. O que o Estado? Digo-te: o Estado não é. O Estado não existe. O Estado somos todos nós, os homens livres. O Estado, enquanto um Leviatã, foi criado por sentimento ou por utilidade? Não teria sido a consciência de superioridade dos homens e a distância entre esses mesmos homens que teria dado razão para o surgimento do Estado? O sentimento geral, fundamental e constante de uma raça não é dominar? E não foi a origem de uma raça inferior e baixa que determinou antítese? E o Poder Público não se apodera da consciência humana para poder manter o instinto de dominar para impor sua expressão? Logo, conclui-se que o Estado não tem compromisso real com o seu povo e o Poder Público não busca alcançar o bem comum se não para manter seu domínio e seu poder.
- Já lhe disse que não entendo nada de Estado, de Leviatã, de antítese, de Poder Público...Para resumir, senhor, não entendo de nada. Só sentei aqui a seu lado porque pensei que o senhor pudesse me dizer onde eu encontro a beleza!
Dirigindo-se diretamente ao seu interlocutor, o homem que continuava calmamente fumando o seu charuto, perguntou:
- O que o senhor entende de Direito? O Direito existe?
- O Direito – perguntas tu, está expresso em normas jurídicas verdadeiramente legítimas, ou será que ele se expressa por meio de conceitos que só refletem os interesses da classe dominante? Onde surgiu o Direito, se não dentro do Estado Leviatã? E o que é o Direito? O Direito que pensamos é o Direito do povo ou o Direito do Estado, imposto ao povo? O Direito é justo? A cultura dominante mente e diz que a humilhação de alguns por outros é Direito porque pertence a uma ordem natural ditada pelo Estado.
- Senhor, nada entendi...de novo. O senhor quer tomar uma cerveja comigo?
- Ao me convidares para uma cerveja, fazes-me esquecer do que te falo...
- Eu não o deixarei esquecer...
- É fato que cada vez mais a vida fica estruturada e dirigida pelas organizações superficientes, onde o indivíduo fica disperso protegido, acomodado no geral, onde é empurrado, compelido à uniformidade e mediocridade. O homem,  portanto, se torna apenas um número ou uma parcela modo, conforme já reconheceu Spnoudis, ao comentar o modo básico de viver com os outros, no cotidiano, numa visão,  de Heidegger.
- Desculpe pela minha ignorância...Também não conheço esses seus amigos ”Spinodis” e “Raideger”, mas parece que eles são muito inteligentes. O senhor também é inteligente, só não me responde onde está a beleza! Eu acho que a beleza não existe! Ontem, vi uma mãe chorando na rua...acho que também buscava a beleza e não a encontrou. Sei disso porque a vi abraçada a um rapaz que estava algemado, saindo do Tribunal...
- Esse aspecto me remete ao teu questionamento sobre a atuação do Direito Penal dentro da sociedade, que não é só a soma aritmética dos indivíduos, assim como também não é o sujeito coletivo que representa outra classe. Uma vez li em Heidegger que um sujeito nu, desprovido do mundo nunca é. Um “eu” sozinho, isolado, sem os outros, portanto, também não é. A sociedade, sozinha, também não é. E o Direito Penal, sozinho, é...? O Direito Penal deve servir para o controle social. “Vigiar e Punir”, é este o papel do Direito Penal? O Direito Penal é o “eu” da sociedade? E o que é esse “eu” social? O “eu” é apenas o indicador formal não-confiável que pode ser também seu próprio oposto. Logo, não é o Direito Penal esse “eu” sozinho. Não sendo o “eu” sozinho deve interagir com a sociedade e não ser apenas um controlador dos conflitos sociais. Mais do que isso, deve ser um “educador” coletivo de uma sociedade. Só assim haverá justiça!
- Por que o senhor fala tudo isso? Está com raiva desse Estado? Eu não tenho Estado...o senhor já foi preso alguma vez?
- Que poderes têm os aparelhos de Estado para julgar? Os Poderes são legítimos? Quem julga o quê? Quem julga o que julga? Fenomenologicamente é correto dizer que os “outros” não precisam ser investigados e julgados?
-E verdade...eu nunca havia pensado desse modo...
- Pois eu lhe digo, meu caro amigo, é nosso dever, dever do Estado, dever dos aparelhos de Estado, tornar fenomenologicamente visíveis as formas e os valores da sociedade. Sendo isso legítimo é, portanto, incorreto firmar juízo de “bom” a qualquer coisa porque esse juízo não emana daqueles a quem se prodigalizou a bondade. Os homens distintos, os poderosos, os superiores julgam sempre “boas” suas ações e estabeleceu essa nomenclatura por oposição a tudo o que julgam baixo, mesquinhos e vulgares. E esses homens distintos dominam o Estado. Logo, impõem o direito de criar valores sociais. Esses valores aparecem dentro dos aparelhos de Estado e são apresentados ao povo como legítimos. Aqui, nesse particular, está o Direito Penal, reproduzindo os valores de bondade e de maldade e estabelecendo o que é certo e o que é errado.
- Senhor, o seu charuto está quase acabando. Olha, eu não quero interromper, mas preciso ir embora...
- Não se vá agora, eu ainda tenho a lhe dizer...
- O que o senhor quer me dizer...?
- Disse Nietzsche que o ponto de vista utilitário é de todo o ponto inaplicável quando se trata da fonte viva das apreciações supremas, que constituem e distanciam as classes sociais. Ele ainda informa que a consciência da superioridade e da distância, o sentimento geral,  fundamental e constante de uma raça superior e dominadora, em oposição a uma raça inferior e baixa, foi o que determinou a separação entre o “bem” e o “mau”, entre o legítimo e o que deve ser punido, entre o que se pode e o que não se pode fazer...E aqui está a nossa realidade  penitenciária: a sociedade separa o “bom” do “mal” e não discute que ela, e ninguém mais do que ela própria, foi criadora desse “bom” e desse “mau”.
- Senhor, eu preciso ir...Tenho que saber, onde está a beleza? Em suas palavras, não a encontrei..
- Espere, ainda não terminei de falar...
- E o que mais o senhor têm a dizer? Nada entendo, mas achei bonitas as suas palavras...E bom é eu caminhar...
- Meu caro amigo, a etimologia nos ensina que o sentido da palavra “bom” e “mau”, em suas diversas línguas, derivam de uma mesma transformação de idéias, da distinção, da nobreza, de privilégios...Esse sentido é sempre o oposto das noções de “vulgar”, de “plebeu”, de “baixo”, na noção de “mau”. A palavra alemã “schiecht” significa mau ou simples que, na sua origem, designava o homem simples, o plebeu. Mais uma vez aparece aqui a nossa realidade penitenciária: o sistema pune o mau, o plabeu, o baixo..O “bom” julga o “mau” e o exclui do convívio social porque o “bom” criou a legitimidade de sua ação através do Direito.
- Desculpe-me. Não queria ofendê-lo quando disse que o bom , era eu caminhar...Mais preciso ir. Eu sou disciplinado. Gosto de ser livre...
- Meu caro amigo, educar e disciplinar, mais do que “Vigiar  e Punir”, é a certeza de que o problema da sociedade foi resolvido de notável maneira. Pensar assim é uma maravilha para quem sabe apreciar toda a intensidade da força contrária, da faculdade de luta. É preciso mobilizar os costumes. Esse é o verdadeiro trabalho do homem sobre si mesmo, qualquer que seja o grau de tirania, de crueldade e de estupidez que existam. Unicamente pela mobilização dos costumes e pela ação .das idéias pode o homem arrebentar a camisa de força social que o aprisiona. Precisamos reconstruir um homem com vontade própria, independente e persistente, um homem com consciência de liberdade de poderio...
- Adeus, senhor...Preciso entrar naquele ônibus...Obrigado pelas suas palavras...mas ainda continuo querendo saber onde reside a beleza. Adeus...
Depois de se despedir, sem esperar mais nada, o homem com ar de intelectual, óculos baixos, apanhou o primeiro ônibus que apareceu. O charuto em sua boca já havia acabado. Ao longe, o sol começava a se pôr. O homem do charuto olhou-o atentamente e, sozinho, falou:
- O Eduardo Galeano está certo: a utopia mora no horizonte e serve para nos fazer caminhar, ou melhor, serve para nos fazer sonhar com o dia em que caminharemos em sua direção e a alcançaremos dobrando a esquina do pensamento rumo ao infinito...
Levantou-se do banco da praça e caminhou, não se sabe para onde.

AMARGAS LEMBRANÇAS


Não tinha mais esperanças de voltar, rever o rosto da esposa, sentir o abraço do seu filho ou ouvir o latido alegre do seu cão. Estava livre, rodando de um lado para o outro dentro de uma canoa, matando insetos com um chapéu de aba rasgada e comendo apenas um jabá salgado e sem tempero. Olhar o sol era mesmo que olhar a lua: não lhe respondiam ou explicavam nada, a não ser que o tempo estava passando.
Sentindo o vento das 18 horas se aproximando e, principalmente, vendo os pássaros apressados passando para os seus ninhos e o sol de pondo lentamente, como que sugado por uma força estranha daquele lugar, ouvindo o barulho do pirarucu dando uns pulos, só pensava em voltar para casa e beijar o rosto do filho e a boca da mulher...
Gastara todas as rezas milagrosas, virara a camisa do avesso, dormira algumas vezes para ver se estava apenas sonhando, atirara para o ar e nada. Nada fazia com que ele saísse dali, daquele lugar solitário, daquele lugar esquisito, estranho. Nunca sentira desespero ou medo antes, mas a situação estava se agravando.
- Será, meu Deus, será que a cobra grande está me atraindo. Não, ela não existe. Ah, Deus, o que faço agora? Perguntava-se, perdido entre a água e a mata, entre o céu e aquele mundo infinito de águas pretas, entre a sua imaginação e a aflição de não ter conseguido pescar nada. O que fazer?
A noite chegava mansamente, trazendo na negritude o barulho o barulho daquele pássaro noturno, da mortalha solitária, do pacoã, da garça dispersada, dos bandos de pericacas...e, com ela, chegava o medo naquele corpo molhado, moído, dolorido, mas inteiro e vivo.
Sentiu vontade de chorar, gritar, cair n’água, meter um tiro na cabeça. Sentiu vontade de ir encontrar-se com um tucuxi nas profundezas do lago.
Ah! Como desejou que fossem verdades aquelas estórias de encantamentos, contados com tanta certeza pela sua inesquecível avó. Talvez já fosse um daqueles homens-boto que entram nas festas sem serem convidados, roubam, seduzem e encantam as damas mais lindas!
Absorvido pelos pensamentos dormiu de tanto cansaço, sem nem mesmo pensar na mulher, no rilho ou no cão. Dormiu sem comer o último pedaço de jabá, sem fumar um cigarro, sem acender a araponga, sem flechar  um tucunaré, sem olhar para a lua. Dormiu, como uma criança.
Mansamente a canoa descia pela correnteza leve daquele lago estranho. A lua começava a aparecer. Os pássaros já não contavam, o pirarucu já  não pulava, já não havia barulho. A noite o estava cobrindo com o manto dos inocentes, com a palidez de sua cor, com a boemia dos beberrões.
O leve banzeiro provocado pelo vento balançava a canoa e salpicava um líquido gostoso, que lhe tocava à boca e caía pelo seu peito. Sentiu vontade de ter a mulher, de ter o filho. Ela queria ter aquela que o acompanhara durante tanto tempo, passara fome diversas vezes, que trabalhava na roça, que pescara, que fizera tudo, que não reclamara da fome...
Sentindo o calor dos primeiros raios do sol bater-lhe ao rosto, começou a abrir os olhos. Ouviu, ao longe, muito longe, uma voz pequena desconhecida. Não ouviu mais o barulho da rasga mortalha, nem do pacoã, ou da marreca, ou das pericacas...
- Está melhor? Ouviu mais de uma vez alguém perguntando algo, mas não entendia. Fez força, abriu os olhos. Estava coberto por lençóis. Suava muito. Sentia-se fraco, dolorido, abatido.
- O que aconteceu? Perguntou-se, sem receber respostas. Onde estou? As perguntas, feitas mentalmente, sem voz, ficaram vagando, vagando. Ouviu novamente a pergunta. Entendeu-a bem, mas não respondeu. Cadê a canoa? Cadê o peixe? Onde está Maria? Onde andam vocês. As perguntas  não passaram da boca.
- Como ele está, enfermeira?
- Melhorou bastante. Ontem à noite quase não dormiu. Delirou muito, falou bobagens, queria ser encantado, disse que iria se afogar...Foi preciso aplicar sedativos.
- Ótimo esse ferimento não é muito grave. O problema maior é a febre. Aplique a medicação e logo ele ficará bom.
- Mas, doutor, como será que ele levou esse tiro e essa mordida de cobra ao mesmo tempo?
- Não sei. Acredito que estivesse pescando, no mato, cansado...alguma coisa assim. Bem, qualquer coisa de piora, quero ser avisado imediatamente.
- Pois não. Qualquer coisa nós o avisaremos.
- Quem será esse homem? Quando foi achado dentro da canoa não portava qualquer documento. Acho que devo comunicar o fato ao delegado...
- O que está acontecendo? Cadê Maria, cadê Zezinho, cadê o Teu? E o barulho dos pássaros, e a noite fria? Continuou coberto de panos, sem entender onde estava o que acontecera e porque havia gente estranha ali. Lentamente virou a cabeça para o lado e dormiu novamente, sentindo-se o mais farrapo dos farrapos humanos...

O DÉBIL MENTAL

Chegou com ar de inteligente, puxou a cadeira, sentou e esperou o garçom. Como este demorava, foi para o outro lado da mesa e puxou outra cadeira, ficando de frente para o lugar onde estivera segundo antes. O garçom, delicadamente foi atendê-lo.
- Pois não, o que o cavalheiro deseja?
- Uma cerveja e duas taças – pediu o homem com ar de inteligente.
- Desculpe-me, senhor, mas deverá chegar mais alguém?  O senhor está sozinho, para que duas cadeiras...e duas taças...?
- Deixe de fazer perguntas e cumpra o que eu ordenei.
Meio desajeitado, o pobre do garçom só soube responder “sim, senhor, sim senhor” e imediatamente trouxe a cerveja e as duas taças.
Encheu uma e ficou sem saber o que fazer com a outra.
- Coloque a cerveja nas duas...
- Mas vai esquentar senhor... – tentou ponderar, mas findou cedendo e enchendo as duas taças. Desconfiado, foi para trás do balcão e ficou olhando.
O homem com ar de inteligente, depois de virar uma taça, foi para  o outro lado da mesa e, ocupando a outra cadeira, virou a segunda taça.
Ficou assim durante muito tempo e consumiu várias cervejas. Depois, tirou uma formiga do bolso e a colocou sobre a mesa. Sempre de cabeça, continuou conversando, sem olhar para os lados.
-...pois é, eu disse que ia brigar com o patrão por sua causa e briguei. Ele me demitiu e eu prometi que o dinheiro da indenização seria gasto com nós dois. E  aqui estou eu...ninguém entende a nossa amizade.
A formiga, coitada, não entendia nada e ele continuou a conversa:
- ...olha, não me adianta falar com as outras pessoas sobre a crise, sobre problemas, sobre dinheiro, sobre mulheres...as pessoas não entendem e respondem grosseiramente. Só você me escuta, só você me entende e me ouve calada...
E o número de pessoas ao redor foi aumentando. Os dois copos eram abastecidos e secados com muita rapidez, sempre com os movimentos de um lado para o outro da mesa. A conversa entre o homem que bebia e a formiga continuou animada, só um falando, lógico:
- ...você se lembra quando o Jânio deixou a Presidência? Ah,  não lembra? Também pudera, você ainda não tinha nascido. Eu era pequeno, mas lembro. Era um bando de gente tola chorando como crianças por um homem que não merecia. A história provou que vivemos ruins hoje por culpa dele. Ah, você lembra do Kennedy. Deve lembrar. Mataram o homem igual ao Tancredo Neves...Quer dizer...quase igual. Um foi morto a tiro. O outro...ah, o outro, deixa pra lá...
As pessoas que viam tudo aquilo comentavam que ele só poderia ser débil mental ou algum homem de outro planeta.
-...e nós corremos, nem pagamos a despesa. Colou daquela vez, mas hoje eu não sei. Você tem me dado muita sorte. Ah, se colar, você vai comer muito açúcar de primeira hoje.
O garçom, irritado com tudo aquilo, foi cobrar a conta, mas o homem olhou-o sério e respondeu que estava duro, justificando que estivera todo aquele tempo esperando o amigo que iria pagar a conta. Foi um sururu danado e o pessoal começou a chamá-lo de doido. Doido ou não, chegou a polícia e o homem foi parar na delegacia.
- Eu não disse, eu não disse sua desgraçada que hoje não ia colar. Mas você insistiu...
E matou a pobre formiga, que nada ouvia, a nada entendia, nada falava e aceitava a imposição daquele homem que se achava um verdadeiro Presidente da República das Medidas Provisórias.

DEPOIS DE NÓS

Depois de nós, depois de anos de intensa felicidade que não foi eterna, mas que durou, pedirei uma bebida qualquer e ficarei olhando as flores brotarem no campo, porque os pássaros da minha imaginação precisam cantar.
Depois de nós, não haverá bomba suficiente para destruir a felicidade e nem loucos o bastante para matá-la e nem espinhos de rosas, depois de nós, e os teus cabelos dourados voarão sobre o campo da vida...
Depois de nós, não seremos os mesmos, momentos nossos não serão os mesmos. Nada será igual, depois de nós, mesmo que tudo pareça igual.
Depois de nós, prometo sentar no primeiro banco de esquina, tirar meus sapatos sujos do tempo, jogar para o lado a roupa, essa terrível roupa que é cobrada como apresentação do bem e mal, e de peito aberto para a vida remarei contra os que eram contra, embora em meu mundo não haja diferença e separação entre contra e não-contra.
Depois de nós, roubarei uma rosa perfumada só para provar que a rosa não é só uma rosa, mas é mais do que uma rosa quando é roubada com amor para ser dedicada  a alguém com paixão. Tentarei escrever uma crônica, mas não  o conseguir, ninguém vai se importar porque nada será igual como antes, depois de nós...
Depois de nós, as guerras perderão o sentido, os casamentos perderão o sentido, os maridos perderão o sentido e as pessoas perderão o sentido. Depois de nós nada mais terá sentido porque não haverá mais nada necessário. Nascerão outros e outros, depois de nós, e nós ainda poderemos nos beijar entre o muro que separa a vida e a morte porque a vida não será mais vida, depois de nós.
Nada haverá depois de nós. De certo que a luz existirá e terá um nome, mas também haverá poetas, mas nada terá sentido depois de nós. E haverá os loucos para ensinar de novo o sentido do amor e os loucos não serão mais loucos, porque entenderão o sentido e a distância da vida sem vida.
Deverá haver um cronista chato que teimará em registrar o significado do amor, mas o amor não terá significado depois de nós.
Ah, vida, não haverá mais vida depois de nós.
Como é difícil explicar que nada será mais nada depois de nós...E terei que abraçar a todos, só para mostrar que não adianta mostrar a diferença entre as coisas, porque as coisas se tornam iguais, depois de nós. Não adianta mostrar que as lágrimas são lágrimas que formam o oceano.
E necessário apenas entender que nada será igual como era antes e basta que todos saibam que depois de nós o mundo não será mais mundo, a vida não será mais vida, a morte não será mais morte, o amor não será mais amor porque, nada, absolutamente nada , nesta vida sobreviverá depois de nós.
Depois de nós, apenas haverá o momento de aceitarmos a única verdade que nos mantém vivos: nada existe, além de nós.
Depois de nós, a lua será a única capaz de observar nossa irracionalidade!

NOS BRAÇOS DE DEUS
Para minha esposa Yara Queiroz

Há tanta angústia em cada despedida!
Em cada adeus, frio e silencioso, morre-se um pouco.
E agora, em necessário instante, um pranto que não demora inquieta solidão que assistirá à vida restante de um sonho que chegou ao fim.
Há uma angústia em cada despedida!
É o fim dos sonhos. É o derradeiro aceno das mãos, os leves sussurros dos lábios...As lágrimas que teimam em rolar do rosto, rumo ao asfalto impiedoso que o absorve, serão as lembranças eternas de um amor que acabou. Ah, quanta angústia em cada despedida!
E agora?
Tão tediosa é a vida sem amor. Uma dor silenciosa corrói o coração, mata os desejos e afoga as paixões.
Não há de ser a morte, por certo.
Caminhará pelos becos turvos, escuros de lodo pela falta do brilho dos olhos da mulher amada, porque assim exige a inquieta solidão que se alojou em seu peito e assiste aos seus passos findos. Que morra a cada segundo a sua morte futura! Sem ter um amor...
Há muito tempo, sim, que estavam juntos. Ficaram velhas as lembranças. E ele também envelheceu pelo tempo. Olhem no seu rosto, vejam os sinais do tempo. Verão também as marcas das carícias da mulher amada. Em todo o seu rosto resistem as marcas. São, hoje, as marcas das dores, são as marcas do amor partido e lembranças de uma vida eterna enquanto durou, mas que morreu...
Ah, o que fará amanhã sem o calor do corpo da mulher amada? De que alimentaria suas fantasias de felicidade? E o que fará quando seu caminho estiver longo demais e não mais contar com as mãos da mulher amada para puxa-lo? Seu corpo se cansará da vida e perderá a sabedoria das crianças...
A falta que ela lhe fará será tanta à hora de dormir que não dormirá. Fechará os olhos, apenas. Na escuridão, tentará vê-la. Na solidão, tentará senti-la por inteiro, deitada ao seu lado, acariciando o seu corpo desnudo. E a noite se abrirá em sonhos... E, quando ao despertar rever em um canto a solidão da ausência dela, saberá contar os dias e sentirá que está vivo, cheio de saudades...
Se a descobrir em algum caminho, por certo caminhará pelas nuvens em sua busca. Perguntará a todos que encontrar pelo caminho se viram uma estrela brilhante caminhando pelo universo ou se sentiram um brilho de luz intenso clareando a escuridão.
Por certo será ela. E ele a encontrará. Nos braços de Deus.


LAMENTO DE UMA ÁRVORE


- Senhor, por que fez isto comigo? Que mal lhe fiz eu ou lhe fizeram as outras árvores, minhas irmãs? Eu nunca ofendi ninguém. Nunca  maltratei ninguém. Pela manhã, ao abrir o sol, aqueciam minhas folhas, purificava o ar, permitia que os pássaros ocupassem meus galhos e divertissem as crianças, dava meus frutos a todos sem cobrar nada.
- Via, daqui do alto, alegres crianças brincando sob a minha sombra. Em segredo, rodopiavam em torno de mim, como se eu fora um pião...
- Nada mal te fiz, senhor!
-Meu alimento era as riquezas da própria terra que os homens insistem em queimar, em colocar veneno, em destruir...nem por isso me revoltei. Nunca maltratei um só homem. Respeitei sempre a todos e, embora saiba de muitos segredo confessados pelos casais enamorados, que aproveitavam a minha sombra para jurar amor eterno, nunca os revelei.
- Fiz de minha vida um singelo viver, busquei sempre compreender a todos e sempre fui humilde, apesar de ser a maior que havia. Eu e minhas irmãs éramos abrigo de muitos quando o sol estava forte, e éramos o refúgio quando havia chuva.
- Embora levassem de mim os frutos, tive a felicidade de ver nascer minha filha. Pequena, frágil, buscando o sol...quando veio um homem e a matou, arrancando-a impiedosamente. Meu coração doeu. Mas eu nada fiz, não tive a mesma felicidade de vê-la grande, forte como eu. Mas tive a felicidade de ver nascer, crescer e fazer de mim suas sombras, o seu lugar preferido na infância, o filho da a matou.
- Senhor, por que fez isso comigo?
- O senhor tem filhos, ama-os, e por isso pode avaliar o quanto chorei naquele dia. Durante a noite, fiquei sem coragem de olhar para baixo. Sabia que a minha filha estava impiedosamente morta...Minha companheira continuou chorando até a hora em que lhe chegou a morte, impiedosamente trazida pelas suas mãos.
- E para que tudo isso, senhor?
- Serei transformada em tábua, em casa, em móvel, serei transformada em fogo, serei deixada apodrecendo e ninguém mais vai lembrar de mim, da minha sombra, nos dias em que eu alimentei os pássaros, alimentei os homens...
- Por que o senhor me matou? Talvez para receber os aplausos dos homens que gritavam de alegria e ver-nos tombar sem defesa, para depois sermos arrastadas por correntes.
- Sabe, senhor, eu gostaria que olhasse novamente em mim, bem nas minhas filhas, e me confessasse se há felicidade em seu ato. Eu tentarei dizer alguma coisa, senhor. Mas a vida de uma árvore não é suficiente para provar relações eternas. Deus chegará, porém, à porta do seu coração e gritará lá de dentro, bradando-lhe com a voz da tormenta:
- Senhor, não mete minhas filhas, não sabe, acaso, que as folhas das árvores são o mais gracioso segredo de minha criação? Que mal fazem elas aos homens? Que fizeram elas a você?
- Um choro surdo se escutará no verde da floresta porque a maldade do homem continua mais poderosa que o segredo da natureza.


A PARTIDA

O tempo parece que havia parado naquele dia de partida. No dia anterior, o sol havia se posto sob um prenúncio de chuva. Do alto do barranco, homens, mulheres e crianças olhavam as águas do Rio Solimões. Havia uma preocupação no ar. E se chovesse? Mas não choveu. O dia amanheceu calmo. Não havia vento. As nuvens eram poucas. Os pássaros estavam em silêncio e o gado permanecia preso no curral, embora já passasse das 10 horas.
Dentro da casa, em forma de T, não havia mais nada a arrumar. Havia, sim, tristeza no ar, A família, reunida em torno de uma enorme mesa para 33 pessoas, conversava sobre a partida e relembrava os vários anos vividos em Varre-Vento.
- Será que a embarcação já está chegando? – quis saber alguém. Um garoto, franzino, correu até à margem do Rio Solimões e deu o grito tão esperado:
 - A barca está chegando!
Foi um corre-corre geral. Todos queriam ver a embarcação atracando, enquanto poucos se abraçavam e choravam. Era difícil para as crianças entender o que estava se passando. Todos sabiam que iriam mudar-se do Varre-Vento para o Ajaratuba, mas além disso, nada mais sabiam.
A euforia das crianças contrastava com a tristeza dos adultos.  E O pai, a mãe, a avó e o avô quase não comentavam nada. Os tios ajudavam na amarração da balsa, onde seriam colocadas as poucas coisas da mudança.
- Vê se não esquecem nada! – gritou alguém.
Nada havia sido esquecido. Não havia móveis. As panelas eram poucas.      Roupas, quase não havia e a única vaca, mansa, não deu problemas.
Do alto do barranco, o avô olhava tudo aquilo com ar distante, parecendo não acreditar que, depois de tantos anos, os via partir. Vez ou outra seu olhar desviava-se da embarcação e fitava o movimento rápido das águas e se detinha a ver o mato descendo. Era o mês de julho e as águas estavam altas. O fenômeno da terra caída persistia e a casa da fazenda já estava muito próxima da beira do rio. Lobo teria que ser construída outra. Mais para quê, se todos estavam partindo?
O sol já começava a se pôr quando o motor da embarcação foi acionado. Era a certeza de que em poucas horas mais de 20 anos de convivência entre a numerosa família deixaria de existir. Ficariam para trás as lembranças, os parentes, as caçadas, as pescarias, os amigos, a cajazeira do quintal e tantas outras coisas...O que viria a seguir ninguém sabia. Onde ficava Ajaratuba? Só os mais velhos sabiam, mas para as crianças isso não importava. Sentia-se uma tristeza no ar, mesclada com uma euforia diferente e inexplicável. Com o chapéu de palha à mão, o avõ balançava os braços em um adeus melancólico. Os parentes, no porto improvisado, ainda se abraçavam.
 E, lentamente, longe das lágrimas dos que ficaram, a embarcação foi sangrando as águas do Rio Solimões e o barulho da máquina foi desaparecendo, deixando para trás o sol que naquele momento se punha por detrás da enorme cajazeira...E os pássaros não cantavam naquele dia. E o tempo parece que havia parado para assistir aquela triste partida.
O sol já havia desaparecido e a noite chegou rápida, cheia de mistérios. As sanefas da embarcação foram arriadas, mas o vento era frio. As carapanãs incomodavam. Da proa do motor, avistava-se para frente somente a água barrenta do Rio Solimões. Para os lados, viam-se ao longe, luzes de lamparinas piscando e, para trás, somente o rebojo do motor e a negritude da noite.
Três dias de viagem e a fadiga. A euforia deu lugar à tristeza e a saudade dos que ficaram bateu forte. Nada mais podia ser feito a não ser andar de um lado para o outro na embarcação, pulando vez ou outra para a balsa  que, teimosamente, erra arrastada ao lado do barco
A canoa foi desamarrada e os maiores aventuraram-se em uma pescaria. A comida era pouca e as crianças choravam com fome. A vaca, transportada na balsa, não dava mais leite e era preciso apanhar capim para a sua refeição normal.
O cachorro estava indócil, fatigado. Das galinhas embarcadas, algumas tinham sido sacrificadas para a refeição dos viajantes. Se não pescassem nada, a situação ficaria pior ainda.
Quantos dias ainda faltavam? As crianças perguntavam, mas os adultos não respondiam. Notava-se impaciência no olhar de todos. E se estivessem perdidos? Não, com certeza não estavam. O prático era acostumado e guiava-se pelas estrelas.
E Ajaratuba, onde ficava? Era longe. Todos sabiam. E o que havia lá? Por que a mudança? Não era melhor  terem ficado no Varre-Vento, perto dos parentes? Com certeza, no novo lugar, não haveria pé de cacau, bananeira e as pessoas não seriam como as outras. Com quem as crianças iam brincar?
De noite, os que haviam saído retornaram. Trouxeram alguns peixes. Dava para agüentar. Ninguém se importava mais com nada e nem as carapanãs incomodavam mais. Todos queriam era chegar. Novamente o motor sangrou as águas do lago e mais um dia se passou.
- Já estamos chegando! – anunciou alguém.
De longe, viram-se casas, muitas casas. Era uma enorme fazenda. Havia luz elétrica. Qual dessas casas será a que ocupariam? E será que as crianças teriam com quem brincar?
O motor reduziu a velocidade e começou o processo de atracação. Muitas pessoas já esperavam os viajantes e novamente os abraços e se via alegria no rosto de todos. Alguns correram para os abraços, outros choraram e os mais velhos, sempre decididos, foram logo pulando para a terra, dando ordens para os outros. E a mudança começou a ser retirada da bolsa, sob os olhos tristes que estava novamente se pondo no horizonte, desta vez engolida pelas águas daquele rio calmo, pelo menos naquele instante.
De dentro do barco, um choro triste era ouvido por todos. Era o da mãe de todos eles. Era um choro de felicidade, afinal uma nova vida estava começando para todos, naquele dia!


COMENTÁRIOS SOBRE O AUTOR


CARLOS COSTA, amazonense nascido na cidade de Manaus, jornalista e assistente social “é um escritor sensível, filosófico e rubensbraguiano”, segundo escreveu o crítico literário Arthur Engrácio, na biografia do autor, Para o poeta espanhol, J. J. Gonzáles Sevillano, autor de “Êxtases Poéticos”, a obra de Carlos Costa merece ser traduzida e publicada em qualquer idioma porque é fantástica. Para o poeta Jorge Tufic, o autor é um dos grandes cronistas de Manaus e tem o dom da simplicidade e da objetividade em seus escritos. O escritor e editor cultural carioca Artur Rodrigues, sobre o autor, comentou que “Carlos Costa é por excelência um pensador que questiona tudo e, quase que em parábolas, nos traduz o que aprendeu”.
O primeiro livro de Carlos Costa, (Dês)Construção..., lançado em 1988, poemas, quando o autor tinha 18 anos, foi imediatamente aceito pela crítica. Hoje, é um dos escritores do Amazonas mais publicado em antologias nacionais e internacionais tendo, por isso, recebido prêmios. O livro OHOMEM DA ROSA, última obra de Carlos Costa, lançada no Rio de Janeiro, na IX Bienal Internacional do Livro, concorreu ao prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.


sexta-feira, 27 de julho de 2012

FAVELAS "PACIFICADAS", MESMO COM ATAQUES DE BANDIDOS!

Favelas pacificadas com bandidos soltos? Não acredito! O significado de pacificar é “um ato de restabelecer a paz, restituir a paz, restabelecer a calma”. Se for esse o propósito da Polícia Militar nos morros do Rio de Janeiro, em termos práticos, conseguiu, mesmo, com ataques a tiros nas UPPs, causando a morte de uma policial feminina. Na teoria, contudo, só se pode restabelecer a paz aonde existisse guerra declarada, mas não foi o caso, apenas o Estado se mantinha ausente de suas obrigações por imposição dos chefes do tráfico!

Mas o que existia nas favelas era um Estado paralelo agindo em nome de um Estado ausente. Se os serviços do Estado não comparecem, os bandidos se estabelecem. É e sempre será assim: enquanto os traficantes não forem presos, julgados e cumprirem suas penas.

Os traficantes “pagavam contas de água, luz, telefone”, vendiam serviços de TV a cabo, botijas de gás, controlavam as Vans, ofereciam proteção aos comerciantes, ou seja, tudo o que o Estado deveria fazer e não fazia, os traficantes ofereciam.

Hoje, as favelas ainda não estão pacificadas; mas latentes, com os bandidos esperando o melhor momento para atacar e ocupar “seus” confiscadas “obrigações”,pelos serviços do Estado que finalmente passou a oferecer. Os bandidos estão se organizando para, mais uma vez, tentar ocupar seus espaços, enfrentando a polícia, atirando em viaturas e matando policiais. Em troca, impunham o terror e compravam o silêncio dos moradores.

Por isso, não acredito em “favelas pacificadas”; no máximo, em “latentes”.

Mesmo assim, turistas estrangeiros as estão visitando como nunca, desfilando pelas vielas com suas máquinas fotográficas, maravilhados com o processo de transformação, obras, ocupações pelo Estado do que antes era feito pelos traficantes. E, nessa simbiose quase perfeita, contam com a simpatia, alegria e a descontração das comunidades, até o sinal de barulho do primeiro tiro no ar para a tensão voltar e preocupar a todos, de novo!

As favelas não estão pacificadas, apenas latentes, aparentes, que não se manifesta por fora, dando a impressão de um filme de imagem fotográfica de uma foto não revelada, mas tudo muda ao sinal do primeiro tiro de fuzil ou metralhadora atingindo e matando  policial militar em serviço. Tudo volta a ser como era antes: correria, preocupação, temor e pavor se propaganda entre as pacatas pessoas que residem nas favelas, vivendo sempre como estivessem em uma estrutura latente, socialmente reprimida pelo medo imposto por longos anos pela total ausência do Estado e suas ações sociais.