sexta-feira, 1 de março de 2013

MEMÓRIAS DO GETÚLIO VARGAS


                        MEMÓRIAS DO GETÚLIO VARGAS

                                               Francisco G. Queiroz, crônica escrita pelo meu sogro em 1966 (1)

                        I – INTROITO

                Memórias de ex-presidente? Nada disso, leitor. São retalhos de fatos e impressões que me fizeram na retina, corroídos durante o tempo em que estou internado no hospital que possui o nome do grande estadista brasileiro.
                Geralmente, o hospital, ou o cárcere, ou do exílio são motivações férteis de memórias, através das quais o simples cidadão, ou o político caído em desgraça, ou o pensador banido de sua pátria por circunstâncias inconjuráveis, exprime para si mesmo ou para os outros, a sua angústia física ou moral, o clamor dos seus protestos irreprimíveis e a fé de suas convicções inerradicáveis.
                Em meu caso, a necessidade de matar a monotonia do tempo, que me entedia a alma, o desejo de olvidar as misérias da politicorréia, o anelo de tornar públicas, com sinceridade e sem outro sentimento subalterno, as deficiências do novo hospital, é que me convenceram a rabiscar estas linhas, quando o alento rebrota em meu ser, que se esgotaria pela dor lancinante, longa e tenaz, que quase se faz chegar ao stress, para usar o têrmo do cientista austríaco HANS SELYE.
                               Getúlio Vargas, 30 de abril de 1 966.

                        II – A OPERAÇÃO
               
                Sou um homem marcado pelo azar, pois nunca fui feliz nas operações a que fui obrigado a fazer. Por mais que seja competente e experimentado o profissional, sempre algo me acontece durante a convalescença. Hoje em dia, a apreensão que me assalta  o espírito, não é mais quando entro na sala operatória, em juízo completamente lúcido, ou já sob o efeito pré-anestésico, e deparo com aqueles vultos brancos, uniformizados com a sombra da morte. O mais terrível para mim, enchendo a mente de reações as mais estranhas, é o despertar do estupor anestésico, ainda sob a ação das dores.
                Agora me submeti a uma apendicectomia, cuja convalescença, adentrando pela semana santa, foi uma verdadeira via crucis, alanceado repetidamente pelas seringas de injeções, acurvado pelo madeiro das dores cruciais, tendo ao meu lado a imagem verônica de minha esposa condoída (*): um quadro triste e terrível para mim, a quem só faltou a excruciação no cimo do Calvário.
                Internado à meia noite do dia cinco, só fui operado às duas horas da tarde do dia seguinte, completamente em jejum e tomado de uma fome pantagruélica, por causa da demora do anestesista, que deveria estar entretido em outro trabalho operatório.
                A nossa Capital (pasmem os leitores!) só tem dois anestesistas: o  Dr. DONÁDIO, que é o mais antigo, e o Dr. MIRANDA, os quais, incansáveis e indormidos, passam os dias e as noites como autênticas lançadeiras, correndo de um hospital para outro, a fim de atender reclamos inadiáveis.
                O meu operador, Dr. ARLINDO FROTA, que está calejado na cirurgia, extirpa, em condições normais, um apêndice no espaço de cinco minutos. No meu caso, a extração foi difícil e demorada, tendo levado cerca de meia hora para completar o seu trabalho, porque o meu apêndice, segundo suas próprias palavras, “era um apêndice grande, sub-ceroso, retro cecal e látero interno”: em outra linguagem de gente, isto quer dizer que aquela excrescência ileocecal, com que todos nós nascemos, era de tamanho anormal, revestida por uma membrana patológica e de posição irregular.
                Concluída a intervenção cirúrgica, que foi mais longa do que se esperava, fui conduzido para uma sala grande, chamada sala de recuperação, que fica perto do centro cirúrgico e não muito distante do necrotério, na qual, sob um sono mais pesado do que a pedra de um túmulo, atravessei a tarde e a noite inteira.
                Alertadas pelos outros antecedentes pessoais, as enfermeiras do centro de recuperação, naturalmente cumprindo ordens médicas, me tiveram sob observação constante, aplicando injeções de morfina, a fim de prolongar o meu estupor.
                Durante a noite, vários carapanãs famintos se cevaram, num festim azucrinante que eu não ouvi, nas partes descobertas do meu corpo insensibilizado, bebendo quase todo o sangue que me haviam dado em transfusão durante o ato operatório.
                Quando senti, no dia sete, a vida renascer em mim, com a suave madrugada invadindo a ampla sala, trazendo o cheiro frescura da mata circunjacente, também senti dores estranhas no corpo e os pulsos amarrados; desembriagado um pouco, virei a cabeça em vários sentidos, e vislumbrei  rostos marcados pela expressão de dor, com bagas de suor orvalhando a fronte macerada, ou então pés hirtos, saindo dos lençóis imóveis como orelhas de alimárias; e no ar, meio ininteligível, o rumor de vozes femininas.
                Os meus sentidos se aguçam ainda mais. Uma mulher morena, entre um gemido e outro, olhava para mim, com uma expressão de solidariedade no olhar, e eu, entre uma reclamação e outra, perguntava a mim mesmo: “Quem será esta senhora?”       
                Horas depois, era eu levado para meu apartamento, onde dormí com a cara batida pelo sol, que entrava pela janela, trazendo a sensação dos beijos quentes, que a autora guardara para mim, com a paixão desvairada das amantes diante da angústia da morte.
                Sempre fui e ainda sou um enamorado contemplativo das alvoradas, que desabrocham nos abismos do infinito com as tintas do arrebol e a grinalda das nuvens transparentes, que lembram o encanto das noivas felizes ou o feitiço das mulheres fatais.
                O crepúsculo, seja rubro ou sombrio, se carrega sempre  de um suplício tantálico de uma melancolia envolvente, da expressão agônica de um ser que morre inundado no sangue que se esvai do seu próprio corpo, até a noite velar-lhe o rosto com a sua mortalha negra.
                A noite é um dossel frouxamente iluminado por círios estelares, sem o incenso dos turíbulos, a fragrância das flores e a imagem piedosa dos deuses.
                Por isso, sinto horror à hipótese de morrer estupidamente sobre a mesa operatória, durante o traumatismo cirúrgico, ou à luz mortiça de um entardecer cinzento, ou então com as trevas rolando sobre o mundo ou a alma, gritando como GOETHE:  “Luz! Luz! Mais luz”.
                Gostaria de expirar com a tranquilidade espiritual de SÓCRATES, agasalhado nos braços de minha família, levando nos olhos desiluminados a pletora de luz e tintas, ouvindo a mensagem derradeira da primeira brisa matutina, sentindo, em suma, o deslumbramento evocativo da manhã nascente, que é a angélia de minhas quimeras, a egéria de minhas inspirações, a deusa do meu culto panteísta.
                               Hospital Getúlio Vargas, 1º de maio de 1 966

                III – A VIA CRUCIS DA CONVALESCENÇA

                Operado no dia seis, três dias depois, fui posto em pé e consegui fazer a primeira micção, longa, torrencial e escaldante, que estava prestes a estourar a bexiga.
                O meu suplício não parou aí. Em conseqüência do choque traumático da cirurgia, tive uma retenção intestinal, acompanhada de uma distensão gasosa aguda, que, afora as dores de rotina, estendendo-se pelo peito e as costas, forçava dolorosamente os pontos do ferimento operatório. Inutilmente aplicaram a sonda retal. Debalde tentaram, durante dois dias, o clister. Outrossim  à noite, só conseguia dormir sob ação entorpecente de tolantina. E o estranho mal prosseguia, esgotando as minhas energias combalidas.
                À tarde do dia onze, extenuado e angustiado ao mesmo tempo, fiz um apelo comovido ao médico e ao amigo, para libertar-me daquele padecimento insofrível. Ele me olhou nos olhos, leu o tormento que se refletia nos mesmos e respondeu secamente: “Hoje você vai dormi sem dores.”  E das palavras passou à ação: fazendo-me várias visitas sucessivas, submeteu-me a uma medicação intensa, que ia desde à aplicação amiúde das injeções até a ministração do sôro e do permiplas através das veias. E, à meia-noite, já mais calmo, entrava a dormir sem o auxílio dos entorpecentes.
                A minha ilusão, porém, foi passageira. No dia doze, começava a manifestar-se outra sensação de dor, que me aguilhoava sem cessar a região da cisão no ventre. Os leigos me ouviam meio aturdidos. As enfermeiras, que me algozavam furando a torto e a direito, pareciam não dar importância às minhas lamúrias.
                No dia seguinte, o profissional, meio desconfiado, confessou: “Isto deve ser um problema de parede.” – De parede? Isto é problema de paredon!” – repliquei de mau humor. Examinando a barriga, o facultativo substituiu a faixa original, que se achava frouxa, por outra meia nova, na qual me apertaram tanto, que me sentí como se estivesse sendo esprimido dentro de um tipitití.
                Horas mais tarde, quando andava a mesmo dentro do apartamento, dobrado pelo sofrimento, a superação veio a furo, enchendo o ar de um cheiro nauseante. Cientificado do imprevisto, o médico (este carrasco que se tem de abençoar sempre) entrava alta hora da noite em meu quarto, com uma expressão de cansaço no rosto, um olhar mais piedoso e uma auréola na cabeça...Seria mesmo uma auréola ou a minha imaginação sobre-excitada?
                Depois a assepsia...o corte dos pontos...a espremedura da incisão...a mecha embebida de metiolato...os gritos de animal ferido...são momentos que jamais esqueço, não só pela pungência do tratamento feito a sangue frio, como pelo alívio que passei a experimentar a partir de então.
                Hoje, quando me sinto restabelecido, pouco a pouco, cresce minha gratidão por esse esfoledor de carne, insensível como uma rocha, frio como um iceberg, calado como o caboclo e corajoso como um herói, que é o Dr. ARLINDO FROTA.
                A minha estremecida genitora, que testemunhou o meu padecer, sente-se tão grata pelo desvelo que ele vem revelando pelo seu filho, que vai dar-lhe uma novilha e, não sei porque, pressinto que esse escorchador de gente acabará, em sua velhice, transformado em fazendeiro, curando bicheiras, diarréias de bezerro, raiva bovina, “mal triste” e recebendo, dos seus novos clientes, coices em vez de salários...
                O Dr. PLÍNIO RAMOS COELHO, no início de sua vida pública, era um homem visceralmente político, que vivia da política para a política. Depois rebentou nele a paixão atávica dos seus troncos cearenses pela agricultura. Dizem que agora, despojado dos seus direitos políticos, o ex-governador se acha no interior de São Paulo, conformado com os azares da sorte e entretido na criação de porcos e, ao que parece, está tão empolgado por essa nova atividade que, outro dia, escrevendo a um compadre seu, falava com tanto entusiasmo dos seus suínos, esparramados na pocilga, que os achava mais limpos do que certos amigos que deixara aqui.
                O senador ARTHUR VIRGÍLIO, desencantado com a política, pretende dedicar-se à avicultura em Brasília.
                Por que então estranhar que o esculápio troque o bisturi pela  corda de laço e a sala operatória pelo curral?
                                Hospital Getúlio Vargas, 2 de maio de 1 966.

                IV – O PROBLEMA DA DOR

                Além de complicada a intervenção cirúrgica, a minha analepsia foi uma série de acidentes imprevisíveis, sobre cuja causa fico matutando em minhas horas deslassantes.
                Alguns amigos atribuem tudo isso à fraqueza de minhas defesas orgânicas; outros; outras lembram ainda, como fator preponderante, a minha natureza nervosa.
                Qualquer que tenha sido o verdadeiro motivo desses percalços, que, uma vez e outra, surgem após as operações, tive agora a prova provada de que sou, caracteristicamente, um tipo vulnerável à dor, que não se apresenta a todas as pessoas com os mesmos sintomas.
                Já quando estudante de Medicina Legal, na nossa Faculdade de Direito, aprendí, durante uma das aulas magistrais do Dr. OLAVO DAS NEVES, que a dor é um fenômeno subjetivo,  que varia de indivíduo para indivíduo, de acordo com a raça, a idade, o sexo, o grau de cultura e a natureza nervosa.
                Confesso, sem nenhuma vaidade, que não sou o que chamam de “frouxo”, na gíria: ao contrário, já enfrentei, a peito aberto e intremulamente, em minha vida pública, várias vezes a morte, colocada diante de mim, cara a cara. Mas, infelizmente, não tenho a analgesia, que LOMBROSO atribuía à constituição psico-somática dos malfeitores.
                Não chego a encarnar o “doente imaginário” de MOLIÉRE, que é, na vida prática, o aborrecimento de todos os discípulos de HIPÓCRATES; mas tenho o que, em medicina, se chama de hiperalgesia ou hiperalgia: qualquer que seja ela, suporte-a calado ou gemendo, a dor me mina as energias físicas, desmantela o meu sistema nervoso e me alarma todo o instinto de sobrevivência.
                Esses tipos hiperalgésicos, que são mais encontrados entre os nervosos e os intelectuais, são os piores clientes dos médicos, quer pelas preocupações constantes que inspiram, quer pelas reclamações que estão sempre fazendo. E nem sempre os médicos sabem proporcionar a assistência psicológica indispensável, serenando as tempestades do espírito, dissipando os receios infundados, preferindo, não raro, ditar pelo telefone a adoção de novas drogas.
                O meu médico, comprovadamente competente, é um homem atarefadíssimo nos hospitais, onde sua presença é reclamada quase a todo instante, para salvar vidas, manipulando o bisturi ou a lanceta, pinças e tesouras: é um cirurgião consumado, que só age e só pensa como cirurgião e, por isso mesmo, não faz uso de nenhuma técnica psicológica para relaxar a tensão nervosa do paciente.
                Inconformado com esse procedimento, que é natural em todo cirurgião, eu lhe pedí, no auge da crise, que me tratasse como médico e como amigo. Respondeu-me que ficasse tranquilo, porque cumprindo o seu dever. Eu não tinha dúvida sobre a sua competência profissional, mas só isto, naquela altura, não me bastava, porque o amigo, em casos tais, vai além do cumprimento do dever e chega à dedicação extrema.
                A esse respeito, trago bem viva na memória uma confissão que me fez o senador ARTHUR VIRGÍLIO FILHO. Falando, de uma feita sobre políticos e outros bichos, que proliferam atualmente no Amazonas, o bravo senador amazonense me revelava que, embora separado politicamente de GAMA E SILVA, jamais poderia obscurecer a gratidão imorredoura ao pediatra que, em momentos bem graves de doença em qualquer de seus filhos, pernoitava na casa dos pais do menor adoentado, esperando a reação do organismo à ação dos remédios ministrados. “Não era só o médico – acrescentava ele – que tinha que presente à cabeceira do leito do doente: era também o amigo desvelado, solidário à aflição da família e incansável na vigília comum”.
                Gratidão semelhante tenho pelo Dr. WALDIR MEDEIROS o qual, em momentos dramáticos, já atendeu à minha esposa, com tanta solicitude e desinteresse pecuniário, que hoje tem a admiração e a amizade eterna de toda minha família.
                        Hospital Getúlio Vargas, 3 de maio de 1 966

                V – A OUTRA FACE DA TRAGÉDIA HUMANA

                Apesar do rigor estabelecido para as entradas, eu tenho a satisfação de receber a visita e a mensagem de pessoas amigas, desde o ministro WALDEMAR PEDROSA, o senador ARTHUR VIRGÍLIO FILHO, o desembargador JOÃO REBELO CORRÊA, o Secretário de Saúde, deputados e médicos, aos administradores mais simples que vivem anônimamente na capital e no interior, homens e mulheres que me vêm trazer, no aperto de mão, o calor da amizade sincera, sem ressaibos de hipocrisia.
                Narram as tragédias que têm chocado a opinião pública. Transmitem o noticiário lacônico dos rádios. Recontam as manchetes dos jornais. Tem-se até a impressão de que o diabo se libertou das mãos de ADEMAR DE BARROS, que se gabava de tê-lo seguro pelo rabo e anda agora solto por aí, espalhando a morte, a maldade, a vilania e a miséria.
                Gosto de ouvir fatos pitorescos, porque me ajudam a desopilar o fígado intoxicado pelos antibióticos, e sinto náuseas quando me falam sobre a suinaria que chafurda e refocila no estrumal da politicalha.
                Quem está aí fora não toma conhecimento do que ocorre dentro do HOSPITAL GETÚLIO VARGAS. Aqui também se registram casos, uns cômicos, outros trágicos, que escapam do faro sherloquiano do repórter mais ousado ou perspicaz.
                Dentre os fatos impressionantes, ocorridos neste sanatório, nenhum me comoveu mais do que a tragédia de MARIA ESTRELA, que, ensandecida por uma desordem mental, tentou suicídio queimando todo seu corpo, de rara beleza e manchado pelo pecado do amor.
                Recolhida a esta Casa de Saúde, o administrador, nos dias de visita, foi obrigado a colocar um soldado da Polícia Militar, perto de seu leito, a fim de evitar a aglomeração sufocante de curiosos que desejavam ver o rosto de múmia, os braços descarnado,  e o corpo desfigurado daquela mulher, que fora nova, linda, tentadora e acendera muitas paixões nos corações humanos.
                Dias volvidos, falece a mulher desventurada, que é  um removida para  necrotério, e ninguém aparece para dar-lhe um enterro condigno. Depois de várias horas, é que surgiu uma parenta, para derramar uma lágrima triste e sem testemunha sobre o corpo embrulhado da infeliz, que morreu como uma estrela cadente, destruindo-se nas chamas da loucura do amor.
                O genial poeta francês já pedia: “ne zombez, jamais d’une femme que tombe!”.
                Outro fato, que ainda não consegui esquecer, é o de uma criança que talvez não tenha ainda um ano de idade, com os olhos apagados pelo câncer, segundo diagnóstico médico especializado.
                Mergulhada na escuridão eterna da cegueira, é uma criança branca, linda, trêfega, cabelos escuros, que tem audição aguçada: a qualquer som de voz, ela estende os braços, em movimentos nervosos, em direção à pessoa que fala; quando a mãe a beija, ela passeia as suas mãos tenras pelo rosto materno;e às vêzes, um lampêjo  de alegria ilumina-lhe o semblante com luz de um sorriso espontâneo.
                Em sua inocência completa, não sabe do terrível dilema, a que está condenada pela ciência extirpar os olhos agora, ou morrer mais tarde, com o progresso da enfermidade incurável.
                A irremediabilidade do mal, a minha condição de pai, o amor que alimento pelas crianças, me inundam o coração de angústia ao pensar no futuro dessa criatura inapelávelmente desprovida do principal sentido, que, nas crianças, lhe povoam a imaginação dos mais lindos sonhos, desde o encanto das bonecas louras à beleza das paisagens naturais.
                Faça ou não a operação, ela não verá, durante o tempo de vida que lhe resta, a face horrenda das tragédias, o estígma da traição, a expressão de ódio, o ricto do despeito e a máscara da covardia, estampados nos rostos dos semelhantes. Adivinhará a alegria da vida nas risadas sonoras que cascatearam nas gargantas. Pressentirá o sol do amor, embriagando de venturos outros corações. Somente a noite da cegueira e a tristeza infinda lhe farão companhia, como a sombra silenciosa do seu próprio corpo. Jamais experimentará durante a sua ansiedade torturante, uma nesga de felicidade bruxolear em seu espírito atormentado, porque rareia, hoje em dia, o milagre de HELEN KELLER, a qual, sendo cega, surda e muda, conseguiu chega a um progresso intelectual que falece ou míngua em muitos que têm olhos perfeitos ou vêsgos, orelhas compridas e vozeirão de cabaretier.
                A medicina tirou a última esperança de cura a este rebento de vida, tão inerme como um lírio amarfanhado pela lufada do temporal desfeito. Mas será que a Santa LUZIA, que fêz o supremo sacrifício, despojando-se de seus próprios olhos para manter a pureza de sua alma, não fará o doce milagre de acender a vida e a luz nos olhos opacos desse pequenino ser malfadado, de coração virgem de qualquer maldade e alma pura como a neve das montanhas alterosas?
                Criança inocente, pobre e sofrida! Se a Providência não conceder esse milagre, ou tirar-te cedo deste vale de lágrimas, eu peço a Deus, com todas as veras de minha fé, que te dê,  no outro mundo, repleno de flores, esplendores e delícias, tudo aquilo que o destino cruel te negou aqui na Terra – a luz das estrelas, alegria dos vergéis floridos, a bem-eventurança dos mártires e a festa eterna do Paraíso!
                Quem se lembrará ainda daquele empregado do Departamento de Águas, um negro alto, forte, espadaúdo, que era sempre visto nas ruas com uma chave pesada sobre os ombros? Pois bem, no dia dezenove do mês passado, eu o vi entrar neste sanatório, arrasado pela tuberculose, que reduzira toda aquela montanha de atleta robusto, toda a massa do negralhão respeitável, a um fantasma, a um espectro, a um espantalho de gente.
                Antes do fim do mês, a sua carcaça de gigante, que parecia querer desconjuntar-se sob a tosse de tísico, foi removida para o sanatório ADRIANO JORGE, onde deve estar sonhando com a sua fortaleza e a sua saúde, que dissipou na bebida e na fome.
                E o rapaz que se acidentou com um tiro no rosto? Internado há vários dias na sala de recuperação, que fica no andar térreo, até hoje não foi operado pelo fato do projétil haver se alojado numa região delicada do cérebro.
                Falou-se em fazê-lo embarca para Brasília, onde  havia mais possibilidade de tentar uma operação com êxito; ainda hoje, porém, continua neste hospital, bem aliviado do seu tomento inicial.
                Nas primeiras semanas, ele vivia sob a ação de morfina e outros remédios, que lhe devolviam a paz, a calma e o sono. Quando voltava a si, durante à noite ou o dia, o meu coração se confrangia ao ouvir os gritos lancinantes ou as blasfêmias desesperadas, que soltava com todas as forças, contorcendo-se como um epiléptico, apesar de ter membros precavidamente amarrados na cama em que se achava prostrado.
                Às vezes, como se estivesse delirando, invocava o nome de Deus ou da mãe (será que ele ainda tem mãe?) numa expressão tão compungitiva, que tem a impressão de que chama o nome – não de uma mulher – mas de uma santa, que estaria curvada, como um anjo de asas espalmadas, sobre o seu corpo cansado.
                “A lágrima – já me disse um amigo dileto – é uma pequena lente através da qual se enxerga Deus”.
                E o nome da mãe, nesses transes pungentes, é o bálsamo que suaviza a dor, é a gota do orvalho que reviceja a flor emurchecida, é a chuva que refresca a terra comburida.
                Que magia! Que talismã! Que mistério profundo! Se encerra nessa palavra tão pequena, tão doce, tão pulcra e tão intraduzível ao mesmo tempo, que se celebra no mesmo mês das flores.
                Poetas nacionais e estrangeiros cantam e ainda têm cantado, em versos e têm sortilégio de preces, o mundo maravilhoso e imenso que se entesoura no coração das mulheres e quem Deus concedeu o milagre da maternidade. A meu ver, porém, nenhum vate suplantou RUDYARD KIPLING que, em pouco mais de seis versos singelos, sintetizou a candura de santa, o amor sacrossanto, a devoção sem limites e o sacrifício extremo da mãe!

                        Hospital Getúlio Vargas, 4 de maio de 1966

                                 Francisco Guedes de Queiroz.(1)                `
(1)– advogado, político com 26 anos de mandatos pelo MDB – Movimento Democrático Brasileiro (só um de vereador pela mesa legenda quando uma representação do então governador, coronel João Walter de Andrade, o impediu de se lançar à reeleição para Deputado Estadual) . Coincidentemente, faleceu em julho de 1987, em mesa de cirurgia, em SP, sob os cuidados da equipe do renomado cirurgião Dr. Zerbini.  
Na época dessa crônica, transcrita na linguagem original, Manaus possuía (dados do IBGE), uma população de 173.713 habitantes. Como a taxa de crescimento populacional se acentuou somente após a implantação em 1967 da ZFM. Em 1970, a população de   Manaus (dados do IBGE) era de 311.622 habitantes.
É factual se imaginar, por hipótese, que no ano de 1966 quando foi escrita a crônica, a população de Manaus girasse em torno  de 180 mil habitantes, no máximo.

(*) Maria Luiza de Souza Queiroz, com quem foi casado durante 30 anos, até sua morte, deixando os seguintes filhos: Dr. Raimundo Rafael de Queiroz Neto, advogado da Petrobrás; Yara Marília de Souza Queiroz, advogada e assessora jurídica da ALE; Vera de Souza Queiroz Marques, assistente social da Prefeitura de Manaus, Amanda de Souza Queiroz, funcionária pública e Adriano de Queiroz Sobrinho, professor e dono de Escola de Informática.  

2 comentários:

  1. amigo, amei! Crônicas belamente escritas, interessantes, e meus pobres olhos se recusavam a deixar a leitura, mesmo quando a dor de forçar a vista me atormentava. Você é artífice de palavras. Fazer beleza das próprias penas é trabalho de mestre!

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  2. Ainda é assim sem recursos.Medicos ate que a maioria sao mesmo bons com o diagnostico.Mas eles tambem nao tinham recursos,aparelhos saturados os estudante de medicina no Getulio eram somente estudantes,pegando experiencia.Todos os estudantes de medicina eram capacitado ou estavam se capacitando sem nehum recurso.Ate hoje nao modificou nossa cidade entrou uma tal de Zona Franca que nao inverte na Saude e nem na educaçao.E hoje ainda é assim.Temos que ir para Sao Paulo para uma radiografia?Entao me diga o que é Zona Franca?
    Maria Hirschi
    Oberriet
    CH

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