quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

UM MOTOR E MINHA HISTÓRIA: (PIETRO BRUNO)/2015 Escrita em 2015, republicada.


      À ROBERTO FLECK, TEREZINA BAYMA E PIETRO BRUNO




O quadro de um barco regional no hall de entrada da Clinimagen, pintado pelo artista plástico Pietro Bruno, em 1977, me transportou a incríveis lembranças de um passado que meu coração navegante e memória debilitada por onze cirurgias no cérebro e duas infecções hospitalares incuráveis, enquanto esperava para ser atendido em consulta de rotina pelo neurologista Roberto Fleck. De repente, me peguei olhando fixamente para uma pintura de um artista de Maués, de barco regional que suavemente cruzava o encontro das águas formado pelos Rios Rio Negro e Solimões, com densidades diferentes, não se misturam; se digladiam com carinho e se abraçam no final, após a contenta. O barco, mostrava um motor um pouco menor do que o que me transportou da comunidade do Varre-Vento para Manaus, no ano de 1968. Os detalhes inseridos pelo artista eram tão impressionantes que me perdi olhando àquele quadro e me vendo dentro dele também, abismado e incrédulo vendo as luzes de Manaus pela primeira vez! 

O pintor da “Terra do Guaraná” pintou com tal qualidade sua obra que me vi senti sendo transportado de novo em uma rede armada de um lado para o outro, embora as redes não aparecessem porque o motor estava de proa, cortando as águas. Ouvia o barulho ensurdecedor de seu motor e admirava abismado as lâmpadas de sódio das ruas da ainda pacata Manaus daquele ano, quando quase todas as ruas eram calçadas de paralelepípedos, inclusive as que recebiam os barcos regionais, que já precisa de um outro. Ao desembarcar, olhava as carroças e me admirava nas calotas dos fuscas que davam uma ilusão de ótica terrível. Ainda ouvindo o ensurdecedor barulho  meus ouvidos, como se tivesse martelando meu tímpano com um tok, tok constante e irritante, do qual, hoje, sinto saudades. Não entendia como uma lâmpada poderia acender e apagar sozinha e meu coração disparou ao cruzar o “Encontro das Águas”. Pietro Bruno fora tão fiel em sua pintura que conseguiu até reproduzir as ondas de proa e de boba da embarcação que, pelo que me pareceu, não deveria ser tão veloz. Se bem que todo motor passa devagar pelo “Encontro das Águas” para que os turistas e mesmo os amazonenses possam apreciá-lo e tirar fotos ou filmar pelo celular. Talvez fosse por isso que havia pouco banzeiro na proa e nem na popa do motor.


Acostumado com as lamparinas a querosene, meu coração bateu acelerado depois que vi as luzes acesas de uma cidade grande! Era demais. Eu poderia apreciá-las melhor quando chegasse ao meu destino: a casa de minha madrinha, Natércia Calado, no bairro Morro da Liberdade. Mas tive uma decepção: a luz que vi ao longe ficava dentro de um globo no centro da sala e não parecia igual, com a casa toda pintada. Fazer o quê? Ela talvez não soubesse que queria vê-la em todos seus filamentos e detalhes! Não teria problema, mas perdia muitas tardes absorto, olhando para um aparelho de TV em cima de um móvel na sala, esperando que as válvulas aquecessem para aparecer a imagem de um indiozinho, enquanto tocava músicas da época e olhando para o teto da casa tentando distinguir o que havia dentro do globo. Sabia que era uma lâmpada, mas a curiosidade de menino queria pegá-la. Anos mais tarde, saindo de férias do jornal em que trabalhava, propus e meu tio Armando Costa, aceitou me levar em um passeio de 17 dias no lago de Autazes. Novamente recordaria o barulho estridente de um motor de doze HP descendo lentamente pelo Rio Madeira, com jacarés, tartarugas pulando n,água quando passava próximo e fazia banzeiro. Como ele era motor o pintado por Pietro Bruno, não fazia muito banzeiro, mas marola, apenas. Mesmo assim, ficamos no meio do lago, ouvindo toda as tardes revoadas de pássaros, pescando e comendo, comendo e pescando. Dezoito horas, um silêncio de arrepiar era o que se ouvia no lago de Autazes, que eu chamei de silêncio sepulcral em uma crônica e até hoje uso essa expressão. No dia de meu aniversário, meu tio decidiu me presentear com um pato do mato feito com arroz. Atirou em um, caiu no lago e entrou embaixo de um mato denso. Decidiu ir buscá-lo. Era 13 de fevereiro! Foi o melhor presente que recebi de meu tio.


Durante o devaneio ou delírio, não sei, vi a maleta de madeira embaixo da rede com uma chave e cadeado. Percebi que dentre todas, minha maleta de madeira rústica era a mais pobre, mas me dava orgulho em carregá-la porque tinha sido construída pelo meu pai, Paulo Costa, especialmente para transportar as poucas roupas que tinha, meus mulambos, para ser mais preciso. Depois de ter sido atendido pelo médico, que se atrasou um pouco, reencontrei a professora Terezinha Bayma, ainda muito elegante e com uma mexa toda branca em seu cabelo ainda parcialmente negro, lhe emprestando um ar de autoridade, Não a reconheci de imediato, mas sabia que já a tinha visto em algum lugar. Depois que a atendente a chamou pelo nome, fui até ela, lhe cumprimentei pelo nome e me apresentei e lhe perguntei: “como a senhora está?” Confesso que a pergunta foi idiota porque ninguém que está em consulta médica se encontra bem! Terezinha Bayma, com toda sua elegância e educação mestra de muitas gerações, me respondeu: “estou indo, como todo velho vai”. Que é isso, professora? A senhora permanece elegante, com sua mesma mexa de cabelo branco entre os negros, que lhe destaca. Por que nunca fui aluno da professora Terezinha Bayma, não sei dizer. Acho que o destino não quis que fôssemos professora e aluno! Mas quem vai saber ao certo se ela também já está aposentada! Não tive o orgulho de tê-la como professora, mas me sinto um aluno seu até os dias de hoje porque Terezinha Bayma sempre me cumprimenta com muito carinho.


Olhando mais uma vez para o quadro, telefonei para a Manauara Rádio Taxi e pedi que viessem me buscar “com um motorista que aceite cartão de crédito”. “Se não tiver, o senhor pode abastecer o carro dele em um posto? “Posso sim, mas avisa ao motorista”, pedi. “Não se preocupe, essa informação será colocada e ele saberá”. Fiquei sentado, me sentindo-me navegando no barco pintado pelo artista plástico de Maués, Pietro Bruno, cruzando o encontro das águas e vendo as luzes da cidade de Manaus, uma novidade para mim! Voltei para casa, mas não esqueci a linda pintura de Pietro Bruno!

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