Se tivesse “apurado” dinheiro
suficiente da venda de picolés que fazia pelas ruas de Manaus ainda calma,
tranquila, com pouco trânsito, pegaria o ônibus de madeira da empresa “Ana
Cassia” e seguiria até o bairro de Educandos, entraria em uma loja que vendesse
material para confeccionar sapatos e, depois, seguiria até um sapateiro para
mandar confeccionar o meu artesanalmente. Sempre pedia fazê-lo um pouco maior
do que meu pé calçava porque tinha que servir para o ano todo e o que folgava, eu
preenchê-lo-ia com jornal ou qualquer coisa que fosse possível introduzir
dentro dele. Essa era uma obrigação que cumpria com alegria e prazer porque já
trabalhava e estudava naquela época.
Caso não tivesse dinheiro,
seguiria a pé mesmo até o bairro, um dos mais populosos na época e onde
existiam excelentes sapateiros artesanais que confeccionavam sapatos de
excelente qualidade. Essa nobre profissão hoje não existe mais. Os sapatos
artesanais foram substituídos pelos sapatos produzidos em fábricas, em linhas
de produção e o preço ficou mais barato, felizmente. Nesse trajeto, usava minha
sandália havaiana, se fosse a pé, caminhava sozinho porque queria fazer
surpresa aos colegas em sala de aula.
Para mim, menino observador
demais, era motivo de orgulho ver os sapateiros utilizando seus instrumentos de
trabalho: facas afiadíssimas para cortar o couro do solado, a “napa” do sapato
e depois batendo pregos em cima da bigorna ou os sapatos sendo costurados em
uma rústica máquina, algumas vezes. A máquina era diferente da que minha mãe possuía
em casa e não sei se era de uma das duas marcas conhecidas na época: Elgin ou Sínger. Não sei!
Era início da década de 70
e eu cursava as quatro primeiras séries do antigo curso primário no grupo
escolar Adalberto ale. Todo início de ano letivo, a diretora Alda Figueira
Pérez entrava pessoalmente em cada sala de aula e dava um aviso: “vocês
terão de hoje a um mês para comparecem com todo o fardamento completo”. Geralmente
o prazo era de 30 dias, no mínimo; mas prorrogado depois somente para aqueles
que não haviam conseguido mandar fazer todo o fardamento, quando era liberado
excepcionalmente para frequentarem as aulas, sem farda ou apenas usando
sandálias de borracha, mesmo.
Já sabia: o fardamento
completo seria a camisa, um bolso pintado pela Escola que se comprava na
direção, calça azul e sapato preto. Eu já tinha providenciado meu sapato e
estava ansioso para pegá-lo, contanto os dias que restavam nos dedos das mãos.
Pronto, chegara o dia e, de novo, de ônibus ou a pé, rumava até o bairro do
Educandos e apanhava a encomenda em uma oficina de sapatos, como se conheciam
na época esses lugares. A calça azul e a camisa branca minha mãe Josefa já as
tinha confeccionado em sua máquina Singer pé duro como se conheciam na época as
máquinas de costura não elétricas.
Antes do prazo definido
pela diretora, eu seguia para a Escola todo feliz e os colegas me olhavam
assustados:
- Já mandou fazer o seu
sapato?
-
Sim, como sei que todos os anos são sempre a mesma coisa e o mesmo prazo, nunca
deixo para amanhã o que posso fazer hoje. Trabalhei muito, vendi muitos picolés
e adquiri todo meu material escolar! Esse “todo” era uma tabuada, régua, lápis,
borracha, um caderno de caligrafia, outro de desenho e mais um para fazer
cópia,além do livro “CAMINHO SUAVE”, de Branca Alves de Lima, no qual aprendi a
ler e, mais tarde, a escrever também. Essa obra já está em sua 131º Edição. No lanche se faz fila para
receber em um copo plástico um copo plástico um mingau de aveia ou leite
horríveis.
Hoje,
os alunos recebem tudo de graça, alguns vão à escola só para comer a merenda
servida com qualidade de um almoço e ainda reclamam da educação. Ah, saudade de
quando não havia nada disso e todos aprendiam sem reclamar de nada!
Recebi do amigo escritor Francisco Vasconcelos, que reside em Brasília, esse comentário sobre essa crônica. Pela beleza de suas palavras, decidi postá-lo aqui:
ResponderExcluirBela crônica, companheiro. Trouxe-me elas recordações de minha meninice, em Coari, onde vivi situações muito parecidas com as que narras. Órfão de pai aos onze anos, também comecei cedo. E porque falaste em sapateiros, lembrei-me do velho tio com quem trabalhava, “batendo sola” e consertando sapatos, que essa era a principal profissão dele. Dele, e por algum tempo, minha também, mesmo após que chegar i em Manaus, aos dezesseis anos. E se vendias picolé, cá teu amigo, nas pobres ruas de Coari, andou desfilando com um tabuleiro na cabeça, tentando vender bolo de macaxeira que minha mãe fazia, atividade em que, ao contrario do que ocorreu contigo, jamais tive sucesso. É, amigo, quanto há de comum entre nossas histórias.
Parabéns! Abraços
Vasconcelos.
nao! indignada pelos jovens de hoje nao aproveitarem as oportunidades
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