Crônica do livro O TEMPLO E OUTRAS ESPERANÇAS, aqui publicado.
Óculos baixo, na ponta do nariz, ar de intelectual de fim de semana, sentou-se ao lado de um homem que fumava charutos e, sem cerimônia, com de bêbado, perguntou:
- Onde está:
a beleza?
Sem dar muita importância à objetividade da pergunta, ele lhe respondeu:
- Certa vez, estando no Chile para uma manifestação de protesto contra a ditadura de Pichochet, o escritor Eduardo Galeano,, introspectivo, olhando para as montanhas e vendo ao longe o pôr-do-sol, se perguntou:
- Seria bela a beleza, se não fosse justa? Seria a justiça, se não fosse bela?
Insatisfeito com a resposta, questionou novamente:
- Onde reside a beleza? Eu não a vejo. Nem quando olho a vida...
O homem, calmamente, falou:
- Eis a questão fundamental do teu pensamento: acreditas na beleza da justiça porque a acreditas justa, meu amigo.
O homem, soltando um pouco de fumaça do charuto, pediu ao que lhe interrogava:
- Pensemos...
- Pensar? Custa-me neurônios...Não posso pagar!
- Você já ouviu falar em Estado?
- Não...
- Eu lhe explicarei – disse o homem que fumava charuto. E se pôs a falar:
- Hoje, carregando nas cosas muitos anos de vida, se o Estado, esse Leviatã tão poderoso e destruidor, formado pela imposição dos mais fortes, é justo.
- Nada entendo de Estado. Não posso lhe responder...
- E o Direito, meu caro amigo, criado pelo Estado poderoso, é justo e, se o for, é belo? Se for belo, será que tem a mesma magia de um pôr de sol no nosso Rio Negro? Ah, meu caro amigo, como me doem essas indagações!
- Mas eu só pretendo saber onde está a beleza!
O homem que fumava cachimbo não lhe deu ouvidos e continuou:
- E o Processo, esse que também condena inocentes e absolve culpados, idealizado pelo Estado, incorporado pelo Direito e executado pelos homens, é perfeito?
- Senhor, não me leve a mal, mas a única coisa que quero saber é onde está a beleza – irritou-se.
- Noetzsche, onde está você agora? Diz novamente que o homem não pode limitar-se a vegetar. Diz que ele precisa cultivar ideais acima de si próprio, precisa ver luzirem estrelas acima de sua cabeça!
- Senhor, eu não sei quem essa pessoa...esse tal de Niche que o senhor falou. Mas se for seu amigo, diga a ele que a única coisa para a qual busco uma resposta, é saber onde está a beleza!
Sem lhe dar ouvidos, o homem que fumava cachimbo, olhando para o céu, gritou alto, abrindo os braços enquanto fazia um novo discurso:
- Indiscutível é o fato de que a dominação funda-se no saber, no conhecimento da vontade do domínio e do eterno retorno. Este é, também, um assunto que devemos pensar: nós, donos do saber, somos também agentes de domínio?
- O senhor parece zangado! Quer tomar uma cerveja comigo? Eu pago! Eu não quero saber de nada, só não gosto de riqueza. Sou pobre, sou proletário...não é assim que se diz?
Como se tivesse discursando, o homem continuou:
- Falas e pensas em Karl Marx e concordo contigo quando dizes que a história das sociedades humanas nunca foi mais a mesma. É verdade que não falou em Max o seu espírito histórico e muito a inteligência do passado. Sua teoria foi, é e continuará sendo revolucionária e insubstituível para a análise da sociedade. Mas isso foi bom?
- Max, quem é ele? É outro amigo seu? O senhor tem muitos amigos...!
Mais uma vez o homem não lhe deu ouvidos e, como se falasse para uma grande platéia de invisíveis, continuou:
- Pensemos, porém, em outro angulo de visão: qual é, segundo a etimologia, o sentido da palavra “bom”? Ela define “distinção” e “nobreza”, no sentido de ordem social.
- O senhor está querendo dizer que eu não sou bom? Pois eu lhe digo que sou! Não há ninguém melhor do que eu...Só meu pai, que me fez!
- Volto para Nietczche, para quem o juízo “bom” não emana daqueles a quem se prodigalizou a “bondade”. Ele diz que foram os próprios “bons”, os homens distintos, os poderosos, os superiores que julgaram “boas” as suas ações; isto é, “de primeira ordem”, estabelecendo essa nomenclatura por oposição a tudo era baixo, mesquinho, vulgar e vilão. Arrogavam-se da sua altura o direito de criar valores e determinativos: o que lhes importava a utilidade! Novamente o nosso pensador diz o ponto de vista utilitário é de todo o ponto inaplicável quando se trata da fonte viva das apreciações supremas que constituem e distanciam as classes sociais. Max, portanto, estava certo e era bom.
- Esse seu amigo “Niche” parece que é gente boa... Onde ele mora? Mas, senhor, esse negócio de bondade não é comigo não! A gente faz coisas boas mesmo dizem que não prestamos...
O homem parou de falar por uns instantes, olhou para o que estava ao seu lado e ficou pensativo. Depois, calmamente, disse:
-És bom, também por virtude!
Voltou a ficar em silêncio por alguns instantes novamente e interrogou-o:
- Desejas saber se o Estado tem algum compromisso real para com o seu povo e se o Poder Público tem atuado com a preocupação de alcançar o bem comum?
-Já que o senhor não responde onde posso encontrar a beleza, eu o ouvirei, embora não entenda nada...
- Tentarei responder-te com outras idéias. O que o Estado? Digo-te: o Estado não é. O Estado não existe. O Estado somos todos nós, os homens livres. O Estado, enquanto um Leviatã, foi criado por sentimento ou por utilidade? Não teria sido a consciência de superioridade dos homens e a distância entre esses mesmos homens que teria dado razão para o surgimento do Estado? O sentimento geral, fundamental e constante de uma raça não é dominar? E não foi a origem de uma raça inferior e baixa que determinou antítese? E o Poder Público não se apodera da consciência humana para poder manter o instinto de dominar para impor sua expressão? Logo, conclui-se que o Estado não tem compromisso real com o seu povo e o Poder Público não busca alcançar o bem comum se não para manter seu domínio e seu poder.
- Já lhe disse que não entendo nada de Estado, de Leviatã, de antítese, de Poder Público...Para resumir, senhor, não entendo de nada. Só sentei aqui a seu lado porque pensei que o senhor pudesse me dizer onde eu encontro a beleza!
Dirigindo-se diretamente ao seu interlocutor, o homem que continuava calmamente fumando o seu charuto, perguntou:
- O que o senhor entende de Direito? O Direito existe?
- O Direito – perguntas tu, está expresso em normas jurídicas verdadeiramente legítimas, ou será que ele se expressa por meio de conceitos que só refletem os interesses da classe dominante? Onde surgiu o Direito, se não dentro do Estado Leviatã? E o que é o Direito? O Direito que pensamos é o Direito do povo ou o Direito do Estado, imposto ao povo? O Direito é justo? A cultura dominante mente e diz que a humilhação de alguns por outros é Direito porque pertence a uma ordem natural ditada pelo Estado.
- Senhor, nada entendi...de novo. O senhor quer tomar uma cerveja comigo?
- Ao me convidares para uma cerveja, fazes-me esquecer do que te falo...
- Eu não o deixarei esquecer...
- É fato que cada vez mais a vida fica estruturada e dirigida pelas organizações superficientes, onde o indivíduo fica disperso protegido, acomodado no geral, onde é empurrado, compelido à uniformidade e mediocridade. O homem, portanto, se torna apenas um número ou uma parcela modo, conforme já reconheceu Spnoudis, ao comentar o modo básico de viver com os outros, no cotidiano, numa visão, de Heidegger.
- Desculpe pela minha ignorância...Também não conheço esses seus amigos ”Spinodis” e “Raideger”, mas parece que eles são muito inteligentes. O senhor também é inteligente, só não me responde onde está a beleza! Eu acho que a beleza não existe! Ontem, vi uma mãe chorando na rua...acho que também buscava a beleza e não a encontrou. Sei disso porque a vi abraçada a um rapaz que estava algemado, saindo do Tribunal...
- Esse aspecto me remete ao teu questionamento sobre a atuação do Direito Penal dentro da sociedade, que não é só a soma aritmética dos indivíduos, assim como também não é o sujeito coletivo que representa outra classe. Uma vez li em Heidegger que um sujeito nu, desprovido do mundo nunca é. Um “eu” sozinho, isolado, sem os outros, portanto, também não é. A sociedade, sozinha, também não é. E o Direito Penal, sozinho, é...? O Direito Penal deve servir para o controle social. “Vigiar e Punir”, é este o papel do Direito Penal? O Direito Penal é o “eu” da sociedade? E o que é esse “eu” social? O “eu” é apenas o indicador formal não-confiável que pode ser também seu próprio oposto. Logo, não é o Direito Penal esse “eu” sozinho. Não sendo o “eu” sozinho deve interagir com a sociedade e não ser apenas um controlador dos conflitos sociais. Mais do que isso, deve ser um “educador” coletivo de uma sociedade. Só assim haverá justiça!
- Por que o senhor fala tudo isso? Está com raiva desse Estado? Eu não tenho Estado...o senhor já foi preso alguma vez?
- Que poderes têm os aparelhos de Estado para julgar? Os Poderes são legítimos? Quem julga o quê? Quem julga o que julga? Fenomenologicamente é correto dizer que os “outros” não precisam ser investigados e julgados?
-E verdade...eu nunca havia pensado desse modo...
- Pois eu lhe digo, meu caro amigo, é nosso dever, dever do Estado, dever dos aparelhos de Estado, tornar fenomenologicamente visíveis as formas e os valores da sociedade. Sendo isso legítimo é, portanto, incorreto firmar juízo de “bom” a qualquer coisa porque esse juízo não emana daqueles a quem se prodigalizou a bondade. Os homens distintos, os poderosos, os superiores julgam sempre “boas” suas ações e estabeleceu essa nomenclatura por oposição a tudo o que julgam baixo, mesquinhos e vulgares. E esses homens distintos dominam o Estado. Logo, impõem o direito de criar valores sociais. Esses valores aparecem dentro dos aparelhos de Estado e são apresentados ao povo como legítimos. Aqui, nesse particular, está o Direito Penal, reproduzindo os valores de bondade e de maldade e estabelecendo o que é certo e o que é errado.
- Senhor, o seu charuto está quase acabando. Olha, eu não quero interromper, mas preciso ir embora...
- Não se vá agora, eu ainda tenho a lhe dizer...
- O que o senhor quer me dizer...?
- Disse Nietzsche que o ponto de vista utilitário é de todo o ponto inaplicável quando se trata da fonte viva das apreciações supremas, que constituem e distanciam as classes sociais. Ele ainda informa que a consciência da superioridade e da distância, o sentimento geral, fundamental e constante de uma raça superior e dominadora, em oposição a uma raça inferior e baixa, foi o que determinou a separação entre o “bem” e o “mau”, entre o legítimo e o que deve ser punido, entre o que se pode e o que não se pode fazer...E aqui está a nossa realidade penitenciária: a sociedade separa o “bom” do “mal” e não discute que ela, e ninguém mais do que ela própria, foi criadora desse “bom” e desse “mau”.
- Senhor, eu preciso ir...Tenho que saber, onde está a beleza? Em suas palavras, não a encontrei..
- Espere, ainda não terminei de falar...
- E o que mais o senhor têm a dizer? Nada entendo, mas achei bonitas as suas palavras...E bom é eu caminhar...
- Meu caro amigo, a etimologia nos ensina que o sentido da palavra “bom” e “mau”, em suas diversas línguas, derivam de uma mesma transformação de idéias, da distinção, da nobreza, de privilégios...Esse sentido é sempre o oposto das noções de “vulgar”, de “plebeu”, de “baixo”, na noção de “mau”. A palavra alemã “schiecht” significa mau ou simples que, na sua origem, designava o homem simples, o plebeu. Mais uma vez aparece aqui a nossa realidade penitenciária: o sistema pune o mau, o plabeu, o baixo..O “bom” julga o “mau” e o exclui do convívio social porque o “bom” criou a legitimidade de sua ação através do Direito.
- Desculpe-me. Não queria ofendê-lo quando disse que o bom , era eu caminhar...Mais preciso ir. Eu sou disciplinado. Gosto de ser livre...
- Meu caro amigo, educar e disciplinar, mais do que “Vigiar e Punir”, é a certeza de que o problema da sociedade foi resolvido de notável maneira. Pensar assim é uma maravilha para quem sabe apreciar toda a intensidade da força contrária, da faculdade de luta. É preciso mobilizar os costumes. Esse é o verdadeiro trabalho do homem sobre si mesmo, qualquer que seja o grau de tirania, de crueldade e de estupidez que existam. Unicamente pela mobilização dos costumes e pela ação .das idéias pode o homem arrebentar a camisa de força social que o aprisiona. Precisamos reconstruir um homem com vontade própria, independente e persistente, um homem com consciência de liberdade de poderio...
- Adeus, senhor...Preciso entrar naquele ônibus...Obrigado pelas suas palavras...mas ainda continuo querendo saber onde reside a beleza. Adeus...
Depois de se despedir, sem esperar mais nada, o homem com ar de intelectual, óculos baixos, apanhou o primeiro ônibus que apareceu. O charuto em sua boca já havia acabado. Ao longe, o sol começava a se pôr. O homem do charuto olhou-o atentamente e, sozinho, falou:
- O Eduardo Galeano está certo: a utopia mora no horizonte e serve para nos fazer caminhar, ou melhor, serve para nos fazer sonhar com o dia em que caminharemos em sua direção e a alcançaremos dobrando a esquina do pensamento rumo ao infinito...
Levantou-se do banco da praça e caminhou não se sabe para onde.
Óculos baixo, na ponta do nariz, ar de intelectual de fim de semana, sentou-se ao lado de um homem que fumava charutos e, sem cerimônia, com de bêbado, perguntou:
- Onde está:
a beleza?
Sem dar muita importância à objetividade da pergunta, ele lhe respondeu:
- Certa vez, estando no Chile para uma manifestação de protesto contra a ditadura de Pichochet, o escritor Eduardo Galeano,, introspectivo, olhando para as montanhas e vendo ao longe o pôr-do-sol, se perguntou:
- Seria bela a beleza, se não fosse justa? Seria a justiça, se não fosse bela?
Insatisfeito com a resposta, questionou novamente:
- Onde reside a beleza? Eu não a vejo. Nem quando olho a vida...
O homem, calmamente, falou:
- Eis a questão fundamental do teu pensamento: acreditas na beleza da justiça porque a acreditas justa, meu amigo.
O homem, soltando um pouco de fumaça do charuto, pediu ao que lhe interrogava:
- Pensemos...
- Pensar? Custa-me neurônios...Não posso pagar!
- Você já ouviu falar em Estado?
- Não...
- Eu lhe explicarei – disse o homem que fumava charuto. E se pôs a falar:
- Hoje, carregando nas cosas muitos anos de vida, se o Estado, esse Leviatã tão poderoso e destruidor, formado pela imposição dos mais fortes, é justo.
- Nada entendo de Estado. Não posso lhe responder...
- E o Direito, meu caro amigo, criado pelo Estado poderoso, é justo e, se o for, é belo? Se for belo, será que tem a mesma magia de um pôr de sol no nosso Rio Negro? Ah, meu caro amigo, como me doem essas indagações!
- Mas eu só pretendo saber onde está a beleza!
O homem que fumava cachimbo não lhe deu ouvidos e continuou:
- E o Processo, esse que também condena inocentes e absolve culpados, idealizado pelo Estado, incorporado pelo Direito e executado pelos homens, é perfeito?
- Senhor, não me leve a mal, mas a única coisa que quero saber é onde está a beleza – irritou-se.
- Noetzsche, onde está você agora? Diz novamente que o homem não pode limitar-se a vegetar. Diz que ele precisa cultivar ideais acima de si próprio, precisa ver luzirem estrelas acima de sua cabeça!
- Senhor, eu não sei quem essa pessoa...esse tal de Niche que o senhor falou. Mas se for seu amigo, diga a ele que a única coisa para a qual busco uma resposta, é saber onde está a beleza!
Sem lhe dar ouvidos, o homem que fumava cachimbo, olhando para o céu, gritou alto, abrindo os braços enquanto fazia um novo discurso:
- Indiscutível é o fato de que a dominação funda-se no saber, no conhecimento da vontade do domínio e do eterno retorno. Este é, também, um assunto que devemos pensar: nós, donos do saber, somos também agentes de domínio?
- O senhor parece zangado! Quer tomar uma cerveja comigo? Eu pago! Eu não quero saber de nada, só não gosto de riqueza. Sou pobre, sou proletário...não é assim que se diz?
Como se tivesse discursando, o homem continuou:
- Falas e pensas em Karl Marx e concordo contigo quando dizes que a história das sociedades humanas nunca foi mais a mesma. É verdade que não falou em Max o seu espírito histórico e muito a inteligência do passado. Sua teoria foi, é e continuará sendo revolucionária e insubstituível para a análise da sociedade. Mas isso foi bom?
- Max, quem é ele? É outro amigo seu? O senhor tem muitos amigos...!
Mais uma vez o homem não lhe deu ouvidos e, como se falasse para uma grande platéia de invisíveis, continuou:
- Pensemos, porém, em outro angulo de visão: qual é, segundo a etimologia, o sentido da palavra “bom”? Ela define “distinção” e “nobreza”, no sentido de ordem social.
- O senhor está querendo dizer que eu não sou bom? Pois eu lhe digo que sou! Não há ninguém melhor do que eu...Só meu pai, que me fez!
- Volto para Nietczche, para quem o juízo “bom” não emana daqueles a quem se prodigalizou a “bondade”. Ele diz que foram os próprios “bons”, os homens distintos, os poderosos, os superiores que julgaram “boas” as suas ações; isto é, “de primeira ordem”, estabelecendo essa nomenclatura por oposição a tudo era baixo, mesquinho, vulgar e vilão. Arrogavam-se da sua altura o direito de criar valores e determinativos: o que lhes importava a utilidade! Novamente o nosso pensador diz o ponto de vista utilitário é de todo o ponto inaplicável quando se trata da fonte viva das apreciações supremas que constituem e distanciam as classes sociais. Max, portanto, estava certo e era bom.
- Esse seu amigo “Niche” parece que é gente boa... Onde ele mora? Mas, senhor, esse negócio de bondade não é comigo não! A gente faz coisas boas mesmo dizem que não prestamos...
O homem parou de falar por uns instantes, olhou para o que estava ao seu lado e ficou pensativo. Depois, calmamente, disse:
-És bom, também por virtude!
Voltou a ficar em silêncio por alguns instantes novamente e interrogou-o:
- Desejas saber se o Estado tem algum compromisso real para com o seu povo e se o Poder Público tem atuado com a preocupação de alcançar o bem comum?
-Já que o senhor não responde onde posso encontrar a beleza, eu o ouvirei, embora não entenda nada...
- Tentarei responder-te com outras idéias. O que o Estado? Digo-te: o Estado não é. O Estado não existe. O Estado somos todos nós, os homens livres. O Estado, enquanto um Leviatã, foi criado por sentimento ou por utilidade? Não teria sido a consciência de superioridade dos homens e a distância entre esses mesmos homens que teria dado razão para o surgimento do Estado? O sentimento geral, fundamental e constante de uma raça não é dominar? E não foi a origem de uma raça inferior e baixa que determinou antítese? E o Poder Público não se apodera da consciência humana para poder manter o instinto de dominar para impor sua expressão? Logo, conclui-se que o Estado não tem compromisso real com o seu povo e o Poder Público não busca alcançar o bem comum se não para manter seu domínio e seu poder.
- Já lhe disse que não entendo nada de Estado, de Leviatã, de antítese, de Poder Público...Para resumir, senhor, não entendo de nada. Só sentei aqui a seu lado porque pensei que o senhor pudesse me dizer onde eu encontro a beleza!
Dirigindo-se diretamente ao seu interlocutor, o homem que continuava calmamente fumando o seu charuto, perguntou:
- O que o senhor entende de Direito? O Direito existe?
- O Direito – perguntas tu, está expresso em normas jurídicas verdadeiramente legítimas, ou será que ele se expressa por meio de conceitos que só refletem os interesses da classe dominante? Onde surgiu o Direito, se não dentro do Estado Leviatã? E o que é o Direito? O Direito que pensamos é o Direito do povo ou o Direito do Estado, imposto ao povo? O Direito é justo? A cultura dominante mente e diz que a humilhação de alguns por outros é Direito porque pertence a uma ordem natural ditada pelo Estado.
- Senhor, nada entendi...de novo. O senhor quer tomar uma cerveja comigo?
- Ao me convidares para uma cerveja, fazes-me esquecer do que te falo...
- Eu não o deixarei esquecer...
- É fato que cada vez mais a vida fica estruturada e dirigida pelas organizações superficientes, onde o indivíduo fica disperso protegido, acomodado no geral, onde é empurrado, compelido à uniformidade e mediocridade. O homem, portanto, se torna apenas um número ou uma parcela modo, conforme já reconheceu Spnoudis, ao comentar o modo básico de viver com os outros, no cotidiano, numa visão, de Heidegger.
- Desculpe pela minha ignorância...Também não conheço esses seus amigos ”Spinodis” e “Raideger”, mas parece que eles são muito inteligentes. O senhor também é inteligente, só não me responde onde está a beleza! Eu acho que a beleza não existe! Ontem, vi uma mãe chorando na rua...acho que também buscava a beleza e não a encontrou. Sei disso porque a vi abraçada a um rapaz que estava algemado, saindo do Tribunal...
- Esse aspecto me remete ao teu questionamento sobre a atuação do Direito Penal dentro da sociedade, que não é só a soma aritmética dos indivíduos, assim como também não é o sujeito coletivo que representa outra classe. Uma vez li em Heidegger que um sujeito nu, desprovido do mundo nunca é. Um “eu” sozinho, isolado, sem os outros, portanto, também não é. A sociedade, sozinha, também não é. E o Direito Penal, sozinho, é...? O Direito Penal deve servir para o controle social. “Vigiar e Punir”, é este o papel do Direito Penal? O Direito Penal é o “eu” da sociedade? E o que é esse “eu” social? O “eu” é apenas o indicador formal não-confiável que pode ser também seu próprio oposto. Logo, não é o Direito Penal esse “eu” sozinho. Não sendo o “eu” sozinho deve interagir com a sociedade e não ser apenas um controlador dos conflitos sociais. Mais do que isso, deve ser um “educador” coletivo de uma sociedade. Só assim haverá justiça!
- Por que o senhor fala tudo isso? Está com raiva desse Estado? Eu não tenho Estado...o senhor já foi preso alguma vez?
- Que poderes têm os aparelhos de Estado para julgar? Os Poderes são legítimos? Quem julga o quê? Quem julga o que julga? Fenomenologicamente é correto dizer que os “outros” não precisam ser investigados e julgados?
-E verdade...eu nunca havia pensado desse modo...
- Pois eu lhe digo, meu caro amigo, é nosso dever, dever do Estado, dever dos aparelhos de Estado, tornar fenomenologicamente visíveis as formas e os valores da sociedade. Sendo isso legítimo é, portanto, incorreto firmar juízo de “bom” a qualquer coisa porque esse juízo não emana daqueles a quem se prodigalizou a bondade. Os homens distintos, os poderosos, os superiores julgam sempre “boas” suas ações e estabeleceu essa nomenclatura por oposição a tudo o que julgam baixo, mesquinhos e vulgares. E esses homens distintos dominam o Estado. Logo, impõem o direito de criar valores sociais. Esses valores aparecem dentro dos aparelhos de Estado e são apresentados ao povo como legítimos. Aqui, nesse particular, está o Direito Penal, reproduzindo os valores de bondade e de maldade e estabelecendo o que é certo e o que é errado.
- Senhor, o seu charuto está quase acabando. Olha, eu não quero interromper, mas preciso ir embora...
- Não se vá agora, eu ainda tenho a lhe dizer...
- O que o senhor quer me dizer...?
- Disse Nietzsche que o ponto de vista utilitário é de todo o ponto inaplicável quando se trata da fonte viva das apreciações supremas, que constituem e distanciam as classes sociais. Ele ainda informa que a consciência da superioridade e da distância, o sentimento geral, fundamental e constante de uma raça superior e dominadora, em oposição a uma raça inferior e baixa, foi o que determinou a separação entre o “bem” e o “mau”, entre o legítimo e o que deve ser punido, entre o que se pode e o que não se pode fazer...E aqui está a nossa realidade penitenciária: a sociedade separa o “bom” do “mal” e não discute que ela, e ninguém mais do que ela própria, foi criadora desse “bom” e desse “mau”.
- Senhor, eu preciso ir...Tenho que saber, onde está a beleza? Em suas palavras, não a encontrei..
- Espere, ainda não terminei de falar...
- E o que mais o senhor têm a dizer? Nada entendo, mas achei bonitas as suas palavras...E bom é eu caminhar...
- Meu caro amigo, a etimologia nos ensina que o sentido da palavra “bom” e “mau”, em suas diversas línguas, derivam de uma mesma transformação de idéias, da distinção, da nobreza, de privilégios...Esse sentido é sempre o oposto das noções de “vulgar”, de “plebeu”, de “baixo”, na noção de “mau”. A palavra alemã “schiecht” significa mau ou simples que, na sua origem, designava o homem simples, o plebeu. Mais uma vez aparece aqui a nossa realidade penitenciária: o sistema pune o mau, o plabeu, o baixo..O “bom” julga o “mau” e o exclui do convívio social porque o “bom” criou a legitimidade de sua ação através do Direito.
- Desculpe-me. Não queria ofendê-lo quando disse que o bom , era eu caminhar...Mais preciso ir. Eu sou disciplinado. Gosto de ser livre...
- Meu caro amigo, educar e disciplinar, mais do que “Vigiar e Punir”, é a certeza de que o problema da sociedade foi resolvido de notável maneira. Pensar assim é uma maravilha para quem sabe apreciar toda a intensidade da força contrária, da faculdade de luta. É preciso mobilizar os costumes. Esse é o verdadeiro trabalho do homem sobre si mesmo, qualquer que seja o grau de tirania, de crueldade e de estupidez que existam. Unicamente pela mobilização dos costumes e pela ação .das idéias pode o homem arrebentar a camisa de força social que o aprisiona. Precisamos reconstruir um homem com vontade própria, independente e persistente, um homem com consciência de liberdade de poderio...
- Adeus, senhor...Preciso entrar naquele ônibus...Obrigado pelas suas palavras...mas ainda continuo querendo saber onde reside a beleza. Adeus...
Depois de se despedir, sem esperar mais nada, o homem com ar de intelectual, óculos baixos, apanhou o primeiro ônibus que apareceu. O charuto em sua boca já havia acabado. Ao longe, o sol começava a se pôr. O homem do charuto olhou-o atentamente e, sozinho, falou:
- O Eduardo Galeano está certo: a utopia mora no horizonte e serve para nos fazer caminhar, ou melhor, serve para nos fazer sonhar com o dia em que caminharemos em sua direção e a alcançaremos dobrando a esquina do pensamento rumo ao infinito...
Levantou-se do banco da praça e caminhou não se sabe para onde.