Minha avó sempre
dizia que a pobreza criava a miséria e reproduzia o político. Por isso ela
nunca votou na vida. Era analfabeta funcional e dizia que não queria ser também
responsável pela progressão geométrica dos péssimos políticos. Para minha avó,
nenhum político prestava e eu sempre lhe dizia: “tem exceções vó. Não é bem
assim”. Mas ela nunca aceitara meus argumentos. Minha mãe também quase não
votava porque seguia a linha de pensamento de minha avó.
Hoje, internado nesse manicômio,
esperando para sentir as dores de mais uma injeção que logo mais receberei,
lembrei dessas coisas e comecei a rir comigo mesmo.
Fui uma pessoa importante, tivera
cargos, funções, imóveis e alugueis e um bom salário; mas hoje vivo entre
dormir, acordar, tomar remédios e, vivendo nessa expectativa de ver mais um dia
chegar para poder contemplar um sol batendo em meu resto e sentir o vento
refrescando meu corpo e ouvindo, nem que seja pela última vez, o canto gostoso
dos pássaros, aos quais dedico muito amor e carinho, considero-me um quase
inútil. Tenho carinho pelos pássaros como pela minha mulher, embora ela quase
sempre fale de forma agressiva comigo. Reconheço que dou motivos para isso,
depois das cirurgias no cérebro a que já me submeti, no total de onze até hoje.
Amo minha mulher, mas às vezes, ela perde
a paciência comigo porque me tornei muito chato e teimoso depois do início da
doença.
Não sei que ainda não me apresentei:
muito prazer, eu sou Fabrício Fellini; esse Fellini, embora de origem italiana,
é em homenagem ao meu bisavô por parte de pai, que era um cearense porreta,
expulso de sua terra e transportado como gado, na marra, contra sua vontade, em
um Navio da Marinha, que ancorara no porto de Fortaleza. Os soldados desceram
com armas em punho dizendo: “ou vai para a guerra ou vai cortar seringa e
ajudar os americanos a produzir pneus”. Diante de tão generosa oferta, não teve
muita escolha. Arrumou as poucas coisas que lhe restavam e rumou para a nova
terra, como se diz, sem lenço e poucos documentos arrumadas em uma maleta de
madeira.
Muito poucas coisas lembram-me de
minha estória do passado. Só o que me contava meu pai, que tinha escutado de
seu pai, meu avô, que ouviu do pai dele, meu bisavô etc.
No Amazonas, fincou residência, a
qual foi repassada para meu avô; depois para meu pai que a vendeu e passou a
morar na capital, onde foram criados seus dez filhos, todos “estudados em
escolas públicas” que eram melhores do que as Escolas particulares na época.
Era comum, naquele tempo, as
famílias terem entre dez e quinze filhos, e com a mesma mulher. Meu pai teve
dez. Também era comum naquele tempo, os filhos estudarem na Europa. Os pais
podiam ser analfabetos, mas pelo menos um de seus filhos tinha que virar
doutor.
Sei apenas que meu avô, marido de
minha avó, pai de meu pai, tinha plantação de cacau, fumo e umas poucas e
preguiçosas vaquinhas que as criava soltas pelo mirrado campo que possuía e que
vendia o leite e as outras pequenas produções para empresários da capital. Meu
pai dizia que alguns dos compradores faziam contrabando de café, pau rosa em
tora, açúcar e também de sandálias havaianas, mas não tenho certeza e não
garanto nada; além de poucos, mais produtivos pés de seringueira. Meu avô, que
não participava e nem sabia das atividades ilegais dos empresários que lhes
compravam a produção toda, sempre viveu e morreu pobre, apenas sustentando a
ganância dos outros.
Certo dia, a casa de meu avô tombou
para um lado, tantas eram as sacas de café empilhadas para suprir o contrabando
dos seus compradores. Faltava açúcar na cidade e meu avô produziu melaço de
cana de açúcar para adoçar o café da manhã de seus inúmeros filhos e depois passou
a estocar sandálias havaianas que seriam usados para reforçar o contrabando do
qual meu avô não participava e nem sabia disso.
Considero minha avó, meu avô, meu
pai e minha mãe, todos como verdadeiros heróis; viver naquela pobreza danada e
ainda ter dez filhos! Meu pai seguiu a receita de meu avô e teve também dez
filhos com minha mãe.
Enquanto aguardo para tomar minha
próxima injeção dolorida que não sei para qual doença serve, espero com paciência
minha morte chegar e penso no que minha
avó dizia sobre política. Embora nunca tivesse concordado com seu pensamento,
achava-a que tinha razão porque pobreza gera a miséria; a miséria diminui a
frequência nas escolas; sem escolas as crianças não aprendem; se não aprendem
ficam burras; se ficam burras não se interessam por política; se não se
interessam por política não formam massa crítica, e se não formam massa crítica,
não sabem votar direito; se não votam direito, votam em qualquer candidato.
Votando em qualquer candidato, correm o risco de eleger bandido que só tem o interesse em ficar rico.
Senhores que, como eu, se encontram
internados nesse hospital, já tomaram conhecimento de alguém que tenha sido
punido por roubalheira de dinheiro público...?
Agora existe uma Lei de Ficha Limpa
para proibir a candidatura de políticos condenados, sabiam? Na última eleição
para prefeitos de capitais, mais de 700 se candidataram sem poder e muitos
foram eleitos e assumiram escudados em “mandados de segurança” da Justiça. Mas isso
não vai adiantar nada porque permitir ou não permitir a um político se eleger,
mesmo com ficha limpa ou suja, é o voto do eleitor e o voto consciente só
existirá com investimentos em educação, cultura, segurança, habitação...
Mas isso não ocorreu comigo, não.
Fiz duas faculdades, tenho massa crítica, sei escolher meus candidatos, mas
geralmente ainda sou enganado em minhas análises porque o voto é uma procuração
que se passa em branco para alguém nos representar. E aí é que reside o perigo!
Chamo-me Fabrício Felline Bisneto,
em homenagem ao nome de meu bisavô, já disse isso mais não tinha colocado o
“bisneto” porque acho isso desnecessário. Poderia ser simplesmente “Fabrício
Fellini III”. Ficaria com mais ar de nobreza! Tenho um amigo que não usa o nome
“Silva” porque já existe mais “Silva” no mundo que bala em época de guerra!
Contou para o filho meu avô, que
contou para o filho dele, meu pai, que sempre que se deslocava à cidade,
frequntava o Cabaré Chinelo e gostava de se envolver com as putas polacas e
francesas que dançavam vestidas com roupas provocantes e sensuais; mas ainda
decentes. As putas ainda não se expunham em praças e nem procuravam os homens
naquela época. Acho que herdei no meu bisavô esse gosto pelo perigo! Mas já
pedi perdão e fui perdoado por minha mulher. Hoje só me dedico a escrever e
divulgar meus textos para os muitos amigos que ainda tenho nesse meu resto de
vida!
Chegou à enfermeira para aplicar
minha injeção e volto depois de sentir a alucinante da picada da agulha. Nunca
gostei de picadas de injeções e cheguei a ficar com flebite de tanta injeção
que tomei na veia. Agora, só nas nádegas!
Pronto. Já aplicaram a injeção na
minha bunda! Não foi na veia dessa vez; mas, na bunda! Ela achou que minhas
veias estão muito inchadas, fracas e sem vida, como eu! Agora, posso continuar
com meus delírios!
Ah, como eu estava dizendo, a
enfermeira que aplicou a injeção na minha bunda e para a qual prazer desci meu
pijama velho, com certo prazer, era uma morena gostosa e tesuda que pensei em
bolinar por baixo de sua roupa branca. Senti um desejo grande por ela quando a
vi entrando toda de branco, com aquela calcinha vermelha por baixo. Deu para
ver isso pelo tecido branco de sua fina calça que usava para proteger o
improtegido, o corpo e as partes dela. Sinceramente, se fosse diretor de um
hospital qualquer, não permitiria enfermeiras com esse tipo de roupa cuidando
de pacientes. Mas, como não sou, até gostei!
Como já narrei para vocês, meu
bisavô frequentava o Cabaré Chinelo, sempre que visitava a cidade e gostava de prostitutas
polacas e francesas se esfregando no colo dos barões da borracha daquela época,
quando o Estado tinha pouco mais de 80 mil habitantes e eles sempre andavam
pelas ruas, de paletós de linho branco e chapéu coco - os ingleses, franceses,
açorianos, portugueses e outros ricaços...- Não lhes contei ainda que foi o avô
da mãe de minha esposa que comprou para o Estado a residência de um dos “barões
da borracha” da época, para servir de
sede do Governo.
Meu avô não era considerado
“barão da borracha”, as produzia bem os seus pés de seringueiras também. Dava
para o gasto, como se costumava dizer por aqui, naquela época.
É que o pai de minha avó foi um
político honesto até morrer na pobreza e esquecido por todos. Se vivesse até os
dias de hoje, o pai de minha esposa, também político honesto e pobre ao
falecer, morreria pela segunda vez se pelo menos lesse pelos jornais ou ouvisse
pela televisão os escândalos que envolvem a classe política, do deputado ao
vereador, passando pelo governador, o prefeito e outras autoridades públicas. Poucos
se salvariam nesse mar de lama! Acho que ele daria razão para minha avó, embora
minha avó nunca tenha votado em meu sogro. Que pena!
A origem de meu sogro, como de resto,
a origem de todas as famílias do Amazonas, comprovadas por pesquisas, era
nordestina. O tataravô, o bisavô, o avô, enfim...sempre alguém era de qualquer
Estado do nordeste, misturado com espanhol, português, alemão...
Aqui nesse hospital fedido e
malcheiroso, esperando a aplicação de minha próxima injeção e aguardando a
morte ou a brisa entrar por aquela janela lateral de meu lado esquerdo, para
pelo menos sentir o vento nem que seja pela última vez, penso, escrevo e narro as
bobagens que desejar, sem qualquer censura como existia na época em que comecei
a exercer o jornalismo, durante o Estado Novo de Vargas, e a partir de 1964
também, tudo era proibido, e tinha que passar pela prévia de um censor da
Polícia Federal, até o dia que comecei a escrever com o nome de Eleutério e
enganei os “urubus” da ditadura militar que não entendiam nada de nada e só
faziam o que a ditadura lhes determinava que fizessem! Eu escrevia “alho” e os
censores entendiam “bugalhos”, ou seja, não entendiam nada com nada do que eu passei a escrever a partir
do novo nome que inventei em homenagem a um amigo analfabeto, casado com uma
socióloga...Nem sabiam o que era “pseudônimo”!
No dia de meu aniversário de 90
anos, minha esposa entrou aqui no hospital com as duas mãos ocupadas; em uma,
trazia uma torta comprada em uma padaria daqui de perto do hospital; na outra,
trazia um vaso com um girassol lindo, com a pétala amarela em meio às sementes
escuras – sabiam que agora o girassol também serve para produzir biodiésel?
Achei lindo e maravilhoso o gesto de
minha esposa: simples, singelo e muito romântico para quem estivesse, quem
sabe, comemorando seu último aniversário. Vi a cena de um campo, onde todos os
girassóis caminhavam a meu encontro,
saindo do campo ao som de valsa, transportados todos pelo gesto simples de minha esposa. Foi uma das cenas
mais lindas que vivi, embora na cama de um hospital!
Cortei a torta; a enfermeira Claide
emprestou-me a faca, mesmo informando-me que se alguém da administração
soubesse, ela seria demitida. Comi um pedaço e distribui o que estava restando entre
os outros profissionais do hospital, inclusive à enfermeira bunduda.
Uma vez, fiz até uma aposta aqui no
hospital: chamei a enfermeira Cleide, a que me emprestou a faca para cortar a
torta e disse a ela: “se você encontrar minha veia com uma agulhada, pago pizzas a você e suas colegas”.
Três se apresentaram, tentaram, e tentaram, mas nenhuma delas conseguiu, porque
todas as veias estavam com hematomas e flebite; roxas. Divertia-me com isso.
Mas sofria muito com as furadas de agulhas, às vezes até 20 tentativas para uma
única bem sucedida. Era torturante!
Também brincava muito com as enfermeiras,
informando minha pressão, mesmo antes da medição que faziam pelo menos três
vezes ao dia, de manhã, no início da tarde e no início da noite. Como sempre
que a mediam dava 12 X 8; “Vai dar 12 X 8”, eu dizia para quem viesse medir meu
pulso. Eu sempre acertava!
Os “barões da borracha” desfilavam pelas
ruas da cidade com caríssimos automóveis com seus paletós de linho branco,
chapéus coco à cabeça e desciam até o porto para providenciar o embarque de
suas produções ou pegar um de seus filhos vindos da Europa, onde estudavam e voltavam
em grandes navios à vapor, falando fluentemente o francês...
Tiveram que construir uma cidade
toda para que os “barões da borracha” continuassem produzindo aqui em trópico
quente e úmido. Não estavam acostumados a isso. Construíram casas com portas e
janelas altas, uma abertura entre as paredes que não levantadas até o teto para
permitir a circulação do vento, piso em madeira, porão vazado de um lado a
outro e construído a uma altura de aproximadamente 30 centímetros do chão, tudo
isso porque o condicionador de ar fora e inventado muito mais tarde. Na época,
dentro das casas, os que podiam, usavam pedaços de gelo colocados dentro de
bacias para refrescar um pouco o ambiente. O gelo era produzido por geladeiras
que funcionavam com gás. Mas isso era só para as famílias mais abastadas e nem
toda casa tinha esse costume ou podiam adquirir o gelo que era vendido em
carroças, no meio da rua, como quase todos os produtos comercializados de porta
em porta.
Já chegou a nova injeção. Estou
ansioso para baixar meu pijama e mostrar minha bunda para a enfermeira gostosa
que se chama Cleide. O nome de minha enfermeira é Cleide, pois ouvi outro
paciente chamando-a pelo nome.
O fétido hospital em que dormimos à
noite, é cheio de macas que rangem a toda hora, quando transportadas pelos corredores,
conduzindo pacientes ou levando mais um defunto. Isso é comum por aqui.
Hoje outra enfermeira veio para dar-me os
remédios e aplicar as injeções. Tomo remédios das 5:30 horas da manhã, quando
acordo, às 22:00 horas, quando durmo.
Não tive com a nova enfermeira bem mais jovem e delicada, o mesmo ímpeto
que tive e tinha sempre com a enfermeira Cleide, de arriar e mostrar minha
bunda branca devido unicamente à total falta de sol me deliciava com essa
atitude e nem espera ela pedir. Já ia arriando, mesmo sem ela solicitar.
Com essa nova enfermeira fiquei com medo de
mostrar-lhe a bunda e ser interpretado que lhe estivesse assediando, mas ela
pediu para baixar meu pijama e aplicou-me a injeção em minha bunda também. Tive
medo de receber um processo. Seria apenas mais um dos muitos que respondi
quando fui jornalista.
Com a nova enfermeira, como já
disse, senti vergonha! Mesmo assim, arriei o pijama e ela aplicou-me injeção na
bunda.
Quando deixar ou hospital – se
deixar, caminharei com minha esposa de mãos dadas pela praia. Faz tempo que não
fazemos isso, passear de mãos dadas pela praia, recebendo a brisa do amanhecer
em meu rosto ou vendo o sol beijar o rio no início da noite.
Na infância, me diziam que ao final
de um arco-íris, existia sempre um pote de ouro. Mas quem de vocês já conseguiu
chegar ao pé um arco-íris? Eles só servem mesmo para nos fazer caminhar, sempre
em busca desse tal “pote de ouro”! Quanto mais se anda em rumo dele, mais se
afastam de nós!
Quando sair daqui e se sair vivo
ainda, iremos a um cinema assistir a
qualquer filme, mas temos de frequentar em um dia de promoção, pois meu salário
de aposentado ficou muito reduzido depois do início de meu tratamento. Ela vai
entender, com certeza, e não vai me chamar de mãozinha, como tinha costume de
fazer enquanto pagava mais um de nossos imóveis; e eu lhe pedia para ter mais
controle dentro de casa! Sempre que eu a via esbanjando em alguma compra,
dizia-lhe cuidado, dinheiro não dá em árvore! Agora ela entende o porquê de eu
sempre dizer isso.
Desejo rever e agradecer à gerente
de minha conta bancária, que me atendeu quando eu tinha dinheiro e quando eu
gastei tudo com remédios, exames caros, tomografias, consultas e tratamentos
que velhos necessitam, principalmente depois de aposentado por invalidez e
sofrendo os efeitos do fator previdenciário.
Quem é velho como eu, aposentado por
invalidez aos 50 anos, necessito de mais remédios que antes. Não deveria existir
a aplicação do “efeito previdenciário” na aposentadoria por invalidez, por
tempo de contribuição. Um dia, todos os velhos entrarão em um bolo só, dentro do
fator previdenciário!
Quero sonhar com minha esposa um
sonho lindo, cheio de flores, rosas mesmo! No sonho, criaremos um animalzinho
só para espantar a solidão que nossos filhos nos proporcionarão depois de
casados. Eu a pegarei com minhas mãos frágeis e flácidas e caminharei com ela
pelo Passeio do Mindú, pelo Parque dos Bilhares ou quem sabe retornarei à Praia
da Ponta Negra mais uma vez, para lembrar-me de como eu caminhava com minha avó.
Mas tenho que voltar à realidade e a realidade é que estou em uma cama de
hospital.
Que bom que estão cuidando bem de
mim. Depois de cinco anos, de idas e vindas aos médicos ainda não sei qual a
doença que tenho. Acho que são várias e decidiram aparecer todas de uma vez só.
Só pode ser isso: á estou com 92 anos e é próprio da idade do “condor”, com dor
aqui, com dor ali...com dor acolá!
Minha mulher dizia que era um touro
porque nenhuma doença me derrubava, mas essa me derrubou. Mais vou levando!
Como eu ia dizendo, meu pai e minha
mãe não estudaram muito, mas sabiam o necessário para viver e criar os dez
filhos que fizeram.
A agricultura era a especialidade
deles. Deixaram o campo e passaram a morar na cidade. Passaram dificuldades,
venceram e deram aos filhos o necessário para viverem com dignidade. Eles
buscaram no estudo dos filhos uma forma de melhorar de vida; os filhos, alguns contentaram-se
com o que já sabiam, o que não era muita coisa, mas já lhes satisfazia e
decidiram não estudar. Já conheciam o “beabá” como se dizia na época, e as
quatro operações de conta. Isso já lhes parecia suficiente para tocar as suas
vidas!
Vivo hoje um segundo de cada vez
como se fosse o último. Viverei assim
enquanto os nove tipos de remédios que tomo todos os dias me mantiverem vivo;
depois...não sei!
Vickman teve um trabalho danado para
recolhê-las a todas; não conhecia a selva, se embrenhou na mata, se salvou de
picadas de cobras, carapanãs, escorpiões, mas não se livrou de picadas que lhes
fizeram contrair malária, tifo, febre amarela e outras doenças que deram-lhe um
ar de velho e abatido, com a pele do pescoço já meio flácida.
Mas
voltemos ao que dizia antes sobre meu avô, porque posso perder o raciocínio:
Meu bisavô se encontrava nesse
instante, sentado tranquilamente em sua cadeira, outro lado do salão, na mesa
colocada num canto da sala central do Cabaré Chinelo, todo forrado com o mais
imponente tecido de cor vermelha, importado da Inglaterra ou França, não lembro
mais, enfiando de goela abaixo uma talagada de cachaça. Não presenciei essa
cena mais meu bisavô a contou para meu avô, que contou para meu pai e eu a
recebi do modo que lhes estou narrando agora e foi convidado para uma viagem até
a Inglaterra.
Federico Fellini, sabendo que não
gastaria um centavo na viagem; aceitou. Henry Vickhan era um botânico
endinheirado que andava sempre de chapéu coco e terno de linho branco. Ele e
meu bisavô ficaram amigos de bar, mas Vicham era afeiçoado ao meu bisavô pelo
seu caráter, honradez e porque certa vez ele o salvara de encrencas com putas
no Cabaré Chinelo.
A conversa foi breve; no dia
seguinte zarparam no navio Aurora. Levariam uns 20 a 30 dias para chegar ao
destino. E 18 para voltar.
Fizeram
uma boa a viagem no confortável e limpo navio Aurora, Vickham e meu bisavô. De
vez em quando entrava uma camareira no interior de suas cabines para trocar os
lençóis da cama e arrumá-la direito. Dois homens viajando sozinhos? Um
horror! O navio Aurora teria sido o
mesmo que trouxe as dançarinas francesas para se apresentarem em um grande show
num imponente teatro construído no meio da selva, só para inglês ver.
No cais do porto da Inglaterra navio Aurora
atracado, meu bisavô pensando na música composta por Aldísio Filgueiras, “Porto
de Lenha”, desceu as escadas e se deparou com pessoas falando uma língua
estranha. Meu bisavô, quando olhou para o porto, o viu velho e quebrado como
diz a música “Porto de Lenha”.
Meu bisavô não entendia nada do que falavam os ingleses. Vickham era
inglês mais pelo menos falava uma língua arrastada, que meu bisavô Fellini
compreendia. Dessas pessoas que falam andando pelas ruas, ele não entendia
nada. “Que diabos de línguas são essas?”- perguntava para si próprio.
Minha bisavó ficou esperando o meu bisavô retornar da cidade para saber
se ele havia efetuado as compras para suprir o mês inteiro. No interior que
eles moravam, seu “Panta”, o regatão, só passava de quando em vez. E olhe lá! O
bisavô, embarcado no navio Aurora, com todo o dinheiro que tinha, nem se
lembrou disso. Aliás, nem se lembrou de minha bisa que vivia a dois dias de
viagem de motor para a cidade. Ele só pensava nas putas que poderia encontrar
na Inglaterra! E de vez em quando, mulher que arrumava seus camarotes, lhe
enchia de desejos, mas não teve coragem!
Ao
retornar, o bisavô descreveu a Inglaterra a bisavó como sendo uma cidade cinzenta,
úmida, feia, de gente branquela e com uma língua estranha. Depois, seguiu para
o meio da selva, onde morava. Desconhecia o que Vickham fora fazer!
Entrou na mata, mandou contar leite de seringa, depois a defumou e
mandou vender tudo. Mais não teve para quem vender sua produção. Achou tudo
muito esquisito. Nem os compradores ingleses se interessaram mais! Achou
entranho de novo e mais estranho era para mim, aqui nesse leito imundo de
hospital, esperando meu remédio chegar e me lembrando dessas coisas.
Como os senhores pacientes, ouvem e
riem do que lhes conto agora, deixarei de narrar-lhes histórias de meu bisavô e
os senhores nunca ficarão sabendo que foi por pedido dele, que a Princesa
Izabel assinou a Lei Áurea e libertou os escravos no Brasil. Nada lhes falarei
também da importância que meu bisavô teve para libertar os escravos no Amazonas.
Nada lhes falarei da amizade dele com Thodureto Souto e que foi em função dos
movimentos abolicionistas e atendendo a um pedido de meu bisa que foi assinada
a Lei que libertou os escravos no Amazonas. Deixarei de contar-lhes, por
delírios febris agora, que meu bisavô foi amigo de vários Governadores do
passado, já no final da vida, quando esperava tranquilamente dobrar “o cabo da
boa esperança”, enfim, não lhes contarei mais nada, nadinha mesmo, porque vocês
riem dessas minhas lembranças de uma saudade!
Meu trisavô, dizem, nasceu na cidade de Florença,
na Itália. Foi o “Barão de Nápolis”! Viveu no ano de 1348, foi amigo íntimo do
escritor Giovanni Bocaccio quando decidiu deixar sua cidade com quatro mulheres
e três homens, os fez rainhas e reis por um dia, para escrever seu livro
“Decamerão”. Nessa época, a Itália sofria de uma das mais terríveis pragas
médicas de sua história.
Vem daí a importância de meu bisavô na
história de meu Estado. Ele herdou tudo do seu pai, o “Barão de Nápolis” que ficou
rico, comprou terras no Brasil e as deu a meu bisavô Felício Fellini para ocupá-las,
pois não existia título de propriedade de terra naquela época.
O “Barão de Nápolis” tornou-se amigo do
rei de Portugal antes de este abandonasse sua “santa terrinha” e viesse se
esconder no Brasil, fugindo da invasão de Napoleão Bonaparte, da França em suas
terras.
Minha esposa vem me visitar hoje?
Ela tem que vir. Estou com saudades!
É terrível ficar nesse hospital
olhando o branco das paredes e o vento sempre entrando pela janela aberta!
Pedirei para minha esposa fechá-la,
quando ela chegar.
Não tem ninguém aqui para fazer
isso! Todos são pacientes como eu.
Ah, não tenho certeza se minha
mulher vem mesmo me visita.
Acho que ela saiu aborrecida com o
meu enxerimento para a enfermeira gostosa! Acho isso, mais não tenho certeza.
A única coisa que tenho verdadeira
certeza é que quando minha mulher decide que dois mais dois são cinco, não, tem
quem a faça mudar de opinião.
Costumo dizer que minha mulher é como
burra velha: quando empaca, não tem quem a faça caminhar pela trilha! Mas deixa
para lá! Casei-me com ela já assim, agora não posso mais reclamar. Tenho que
aprender a conviver com isso!
Henry Vickham, em nome do Kew
Gardens, de Londres, pode ter sido o primeiro pirata ecológico do mundo. O certo
é que depois que ele entregou ao rei as sementes de seringueira e o rei as
mandou plantar na Malásia e o Ceilão, possessões inglesas e cheias de escravos,
nunca mais meu bisavô conseguia vender a produção dele – só agora meu avô soube o que ele e Vickham foram fazer na
Inglaterra.
A Inglaterra
fornecia 9% de borracha ao mundo. Em um ano, o amigo de meu bisavô do Kew
Gardens, com a ajuda do rei da Inglaterra e
a colaboração de mão-de-obra escrava, ultrapassou o criador e a cidade praticamente
ficou a “ver navios”, como se dizia.
Nunca mais conseguiu vender a produção dos
poucos pés de seringa que cultivava, recebida como herança de família de meu
tetravô e que foi repassada como herança hereditária para família, passando de
pai para filho, mas eu não quis saber disso.
Como não vendia mais nada de sua
produção também, em 1929, meu avô mandou queimar todos os pés de seringueiras.
Acho que seguindo o exemplo de meu avô, outros produtores queimaram também os
seus pés de seringa, café, laranja, cacau, fumo...porque não tinham mais preço
na bolsa de Londres, desde a noite de
outubro daquele ano. Os poucos pés que não arderam no fogo, mas também não adiantava
mantê-los em produção, foi repassado ao meu pai, que herdou uma pequena parte
dessa herança maldita.
E eu, aqui, com flebite nas veias de
tantas injeções, e já com a bunda dolorida, recordo essas coisas que me foram
contadas por meu pai, que recebeu de seu pai, que lhes teria repassado por meu
bisavô, que recebeu as de seu pai, meu tataravô, o de origem italiana que
começou toda essa saga. Não posso atestar e nem saber se tudo isso aconteceu
mesmo como lhes conto agora porque eu inda era um projeto de vida e nem tinha
ainda saído de dentro do testículo de meu pai.
Só resta-me mesmo procurar ver fotos
de mulheres peladas e me lembrar, com muita saudade, de minha mulher, que há
tempos não me visita, mas acho que virá hoje, sem muita certeza. De noite,
penso nela. De manhã cedo, ao acordar, tenho o cuidado de virar o colchão para
o outro lado, retirar a roupa de cama e tocar fogo. Não quero que ninguém saiba
de meus pensamentos! Amo minha mulher, já disse. E lembro-me dela como posso!
A
enfermeira Cleide e veio hoje me aplicar uma nova injeção para baixar a febre.
Mas
como está ficando cada vez mais gostosa essa enfermeira, cada vez mais bunduda!
Arriei o pijama e recebi a picada da agulha na bunda. Depois foi embora sem me falar
nada. Estranho! A enfermeira sempre gostava de conversar comigo, ouvir as
estórias que costumo contar.
Mas hoje não aconteceu nada disso: ela entrou,
arriei o pijama; recebi a picada da agulha...e a enfermeira saiu para atender a
outros pacientes. Será que a enfermeira
tinha ficado com raiva de mim só por que tentei boliná-la na última vez?
Talvez!
O meu Estado - não o meu estado de saúde
porque este sempre foi péssimo, mais o Estado como um espaço de terra, pessoas,
leis...da minha estória era antes próspero e com um futuro brilhante na
primeira década do século XIX. Mas ficou abandonado, atrasado e sem esperanças
no futuro. As condições sanitárias pioraram; eram ainda maiores onde meu bisavô
morava, com falta de médicos, medicamentos e outras necessidades básicas!
Diziam até que onde meu bisavô Fellini
morava era uma área farta; “fartava tudo”. Mas meu bisavô nem desconfiava que nele
residisse uma parcela de culpa no processo de suas terras!
E por falar em terras, a que meu pai
recebeu de meu avô, que recebeu de seu pai, meu bisavô, que teria recebido de
meu trisavô, todos sempre diziam que era mentira que os seringalistas eram os verdadeiros
donos delas, porque todas lhes foram cedidas por Getúlio Vargas e, em troca, o
Governo recebia impostos pela exploração das seringueiras. Mas ninguém pode
saber disso. Lhes contei isso em
segredo, em confiança e espero que não se passe adiante.
Não quero que meu bisavô venha a
sofrer represálias por isso, até porque mexer com defunto é mexer com casa de
caba de igreja! Sempre há revide! Nem lhes contarei que o meu Estado já
contribuiu com mais de 40% no pagamento da dívida externa do país, que vem
desde a Proclamação de sua Independência!
Já lhes contei que meu passa-tempo
aqui nesse hospital e olhar fotos de mulheres peladas em revistas masculinas
para me lembrar de minha mulher e também sempre me lembrar da enfermeira
gostosa que aplica injeções na minha bunda todos os dias!? Só que ninguém sabe
disso, ainda!
Aliás, ultimamente estou com essa
mania estranha de ver fotos de mulheres nuas só para lembrar-me de minha mulher,
companheira, amiga e minha deusa. Sem ela, não vivo! Não me canso de elogiar suas curvas corporais gostosas
e as suas partes sempre apetitosas. E a bunda! Ah, que maravilha e dura a bunda
que ela tem! Só um velho caquético como eu para dizer essas coisas! Mas é
verdade!
Ah, tenho uma coisa para contar para
meus colegas pacientes. Sei como começou a história do vibrador. Por favor, não riem, vou lhes contar. Mas esse
um assunto é muito sério e não caberão risos.
Senhoras pacientes, tampem seus ouvidos,
por favor. Ei, você aí? Não desejo constrangê-la com minha estória. A senhora
já tem quase 80 anos! Não ficaria bem ouvi-la.
Meu bisavô contou para meu avô, que
contou para meu pai que segredou para mim que foi o doutor Joseph Mortimer
Granville quem patenteou o primeiro vibrador eletromecânico com forma fálica,
porque estava cansado de massagear os clitóris de mulheres que sofriam de útero
ardente.
Histéricas, o procuravam em seu
consultório. E por que estou falando desse assunto agora? É porque minha
mulher, vendo-me definhando a cada dia, pediu para comprar um para ela, porque
jura que nunca mais arranjará outro homem tão chato e ranzinza como eu. Bastou
um!.
Só posso dizer que de 1880 até os
dias de hoje, muitos tipos e formas foram inventados, só não sei se vou dar para
minha mulher como presente. Acho que não!
Cadê o médico, não vem me ver hoje? O médico já passou? Todos os que me visitam estão usando roupas
brancas e que eu nem percebi que um senhor idoso que saiu daqui a pouco, era
meu médico neurologista.
Queria perguntar qual é a doença
que tenho, porque até agora nenhuma
pessoa me disse. Só me dão remédios, mas não sei para o quê. Acho que estou
ficando doido agora.
São tantos pensamentos, são tantas
coisas para dizer! Amanhã vamos ter votação, mas não sei como deixar esse
hospital para votar em meu candidato preferido.
Ele, meu candidato é igual ao meu
falecido sogro: sério, competente e honesto demais. Por isso, deixou de atuar
como Secretário de Estado no Governo. Mas não esmoreça não, meu amigo, as
coisas são assim mesmo! Os homens sérios e honestos sempre sofrem mais do que
os homens desonestos! Mas vou dar um jeito, não quero ser mais um culpado pela
escolha de péssimos políticos. Começo a entender agora porque minha avó não
votava. É que o coração desiste quando parece que a morte vai chegar...
Não sei quem teve a infeliz idéia de
mandar construir um hospital tão longe do centro da cidade! Acho que é porque
eles não queriam ter doidos, pedintes ou maltrapilhos caminhando pelo centro da
cidade. Com um hospital tão distante assim, que atende a qualquer pessoa agora,
hoje temos que entrar em ônibus velhos,
enfrentar uma hora de viagem, ficar acompanhado de pessoas indesejáveis até
chegar aqui.
Não sei se bem por isso, mas acho
que foi! Nem quero pensar nisso agora. Só desejo ter de volta minha saúde plena.
Para tê-la, não importa os sacrifícios de tenha que enfrentar desde que eu
fique bom. Mas como vou ficar bom, se nem eu nem os médicos sabem o que tenho?
Tenho fé em Deus que sairei desse
aperreio momentâneo.
Ao sair, vou repensar todos meus
valores, minhas crenças, meus objetivos e metas. Darei mais atenção aos meus
amigos, mais carinho às leituras que faço. Verei o sol, a lua, as estrelas, os
dias e as noites com mais admiração e respeito.
Já
disse que tenho dois filhos com minha mulher? Não! Pois tenho dois, um não é
bem meu, mas pai é o que cria e eu a criei ou ajudei a criá-la desde que tinha
14 anos, quando casei com à mãe dela. Um é adolescente, gosta de matemática, e a outra é formada
em psicologia, mas vive só de música e acha que o mundo sempre gira em torno
dela, como se ele fosse ainda da época do teocentismo! O que não é verdade. Mas,
fazer o quê? Essa juventude é toda igual; sem tirar nem por.
Durante minha vida, escrevi e lancei
alguns livros com o nome de Frederico Fellini Neto, mas eu gostaria que em vez
de “Neto” fosse “III”. Daria um ar de nobreza ao nome!
Como estava dizendo – ah, a
enfermeira bunduda acabou de entrar aqui para aplicar-me mais uma injeção, só
que desta vez não precisarei arriar o pijama e mostrar-lhe a bunda, pois será
contra uma trombose que adquiri e será aplicada na barriga desta vez -. Quando
deixar este hospital onde já gastei todo meu dinheiro com remédios, exames caros
e outras necessidades darei mais atenção aos que eu quero bem.
Dentre meus amigos verdadeiros
mesmo, tenho meu poeta preferido, um empresário que admiro e respeito outro
empresário que conheci ao longo de minha vida, uma advogada que ajudou a
publicar um de meus livros, na juventude e tantos outros de ocasião, quando se
está por cima, porque quando se está por baixo, eles fogem que nem cachorros
com pira com medo de banho. Muitos dizem que conhecem Frederico Fellini Neto,
mas poucos são os amigos que eu os considero de verdade. Ah, tem um médico
também daqui do hospital que vez ou outra colhe examina meu sangue. Quero-o
muito bem a ele também, mas só eu e ele sabemos disso. É segredo! Não quero que
ninguém pense que virei gay depois de velho cacareco.
Verei o sol com mais amor; a lua com
mais carinho, as estrelas com mais cuidado. Ouvirei e sentirei o vento batendo
em meu rosto e esvoaçando meus cabelos desalinhados. Se sair dessa maca, ainda.
Preciso sair daqui! Não aguento mais
esse hospital fétido e malcheiroso. Acho que minha avó tinha razão: as
políticas para a saúde são boas; o problema é o “meio” que não faz a aplicação
das verbas como deveria.
Infelizmente tomei uma decisão: aos
90 anos, deixarei de votar!
Como minha avó dizia, não quero
ser mais um a engordar os bolsos, meias,
cuecas e as bolsas de um mau político
que se apresenta com cara de anjo mais depois executa as políticas públicas com
um jeito de demônio! Infelizmente tomei minha decisão muito tarde, pois pensei
que, com meu voto, estava contribuindo para melhorar o país, mas me enganei!
Esqueçam tudo que eu disse antes: memória
de velho às vezes não é muito precisa, principalmente quanto aos políticos. Afinal,
sou apenas um velho gagá ultrapassado, aposentado aos 50 anos, com o fator
previdenciário para reduzir meu salário da ativa em mais de 80% de seu valor...
Terei que
aprender a viver com esse mísero troco que recebo como aposentado!
Ah, se amanhã minha cama amanhecer vazia,
não pensem que morri. Simplesmente voltei para meu lar, “um palacete aéreo”
como o definiu meu poeta querido; mas só na visão de um poeta tão inspirado e
inspirador é que pode existir um “palacete aéreo”! Moro em um apartamento bom,
no alto de um edifício. Já morei em outros apartamentos também, mas acho que
agora me encontro mais confortavelmente instalado.
Nunca quis morar em prédios antes; pagar
condomínio todos os meses...mas minha mulher me convenceu. Depois que morei no
primeiro, ainda modesto, tomei gosto. Adquiri e morei a em mais dois. Um o
mantenho alugado porque nunca se sabe o dia de amanhã! Hoje vivo com uma
miséria da Previdência! O outro dei como entrada para adquirir o meu atual.
Darei mais uma chance aos políticos e
votarei nas próximas eleições – se ainda estiver vivo e se conseguir sair deste leito! Mas
preciso que eles melhorem a situação dos aposentados por invalidez de qualquer
natureza. Ganham muito pouco os coitados! E é quando mais precisam! Como é o
meu caso!
Um velho com mais de 90 anos não tem mais
esperanças em nada, nem em acordar no dia seguinte. Daqui, sei que me encaminho
rápido para o cemitério se é que alguém ainda vai querer carregar meu caixão,
certamente da pior qualidade.
Ah, quando eu morrer mesmo, procurem entre
minhas coisas, meus afarrabos, que vocês encontrarão um seguro para custear
minhas despesas de enterro. Fiz um seguro até para tratar meus dentes, mas
nunca o usei.
Voltemos de novo ao meu “palacete aéreo” como
não o definiu direito o poeta. Ele é bom – não posso negar, mas é modesto para
o padrão de vida que tinha antes de adoecer. Mantenho e tenho muito carinho com os quadros
presos às paredes do meu apartamento; mas ele nem é tão suntuoso assim!
Tenho tudo o que desejo e na hora em que
eu bem deseje usá-los: uma boa vizinhança, piscinas, sauna, academia de
ginástica; enfim, tenho o conforto necessário para um velho decrépito como eu,
vindo de uma linhagem de italianos, misturado com cearenses que depois se
misturou com índios e, por último, me venho. Sou, portanto, a mistura de muitas
raças e não como o Governo tenta apregoar que existe só uma raça no país. Estão
querendo imitar a Alemanha! Uma raça de arianos, onde já se viu uma coisa
dessas!?
Achei isso um absurdo, mas fazer o quê? Eles é que mandam no país...!
Posso até morrer, mas continuo afirmando que raça é uma invenção criada pelos
tolos para nos enganar com um discurso de “estatuto da igualdade racial”.
Alguém
meta a mão em minha gaveta aqui ao lado de minha cama, pois trago sempre comigo
uma foto de meus avôs paternos. Quero vê-la mais uma vez. Desejo rever a foto
de minha avó sempre com seu cabelo preso no alto da cabeça. Quero me lembrar de
meu avô andando com dificuldades pela rua devido a uma hérnia que teria descido
e se alojado em seu saco – segundo meu pai me confidenciou. Mas acho mesmo é
que deram um chute certeiro no saco dele. É, deve ter sido isso. Não sei se
isso é verdade, mas quero lembrar minha avó com seus mais de 70 anos às costas
passeando comigo pela estrada da Ponta Negra. E, de mãos dadas, ainda! e eu
brincando com ela. “Ai, vó, a senhora tá tão enxuta que pode até arranjar um
namorado garotão!”. Eu dizia isso e ela ria. Depois eu dizia: “não paquerem
minha avó porque ela é comprometida e está acompanhada!”. Ela ria mais ainda.
Quero
recordar tudo isso antes de eu morrer de velhice mesmo, não de doença. Minha avó morreu com mais de 70 e meu avô bem
antes.
Droga,
depois de 60 dias eu aqui internado e fazendo seguidos exames, os médicos ainda
não descobriram minha doença! Não aguento mais! Acho que vou dar uma de doido,
sair correndo pelos corredores, quebrando todos os alarmes contra incêndios e
gritando “fogo, fogo”, para que eles me dêem alta médica.
Tentei,
dei uma de doido, dizendo “saíam todos, o hospital está pegando fogo!”,
apertava os locais de alarmes contra incêndios. Veio um enfermeiro correndo
atrás de mim, me alcançou e me amarrou nessa cama imunda de novo. É por isso
que hoje amanheci todo amarrado e com meus pulsos doloridos. Mas não estou
preso na polícia, ainda bem. Eu não suportaria tanta humilhação: velho, doente
e ainda preso injustamente só porque não quiseram dar minha alta médica. Por isso
eu digo a vocês. Não tentem essa lazeira baré de novo porque comigo não deu
certo.
Lá
vem outra injeção para mim: “vai ser na bunda ou na barriga dessa vez?”.
Perguntei para não arriar e mostrar minha bunda inutilmente! “Na barriga de
novo, contra a sua trombose!”. “Ah, melhorou! Não suporto ter que sair
mostrando minhas intimidades todos os dias”, respondi e fiquei aliviado porque
em vez de mandarem a enfermeira bunduda e gostosa vir me aplicar a injeção,
mandaram-me um homem – e acho que é gay!. Tinha uma voz muito macia para os
padrões masculinos!
Nada
contra os gays, até gosto deles. Mas eles lá e eu bem aqui, no meu canto,
sossegado. Acho que o gay precisa ser muito macho para aguentar um cacete deste
tamanho entrando no rabo dele. Eu quase não aguento nem uma agulha de injeção
entrando e dilacerando minhas carnes!
Já
disse que só deixarei um seguro de vida quando eu morrer. Não deixarei qualquer
outra herança como eu pretendia, porque gastei tudo com médicos, exames e
medicamentos. Isso porque tenho plano de saúde. Quem não tem morre mesmo é na
fila de espera!
Quando
eu estava trabalhando como Assistente Social em um pronto socorro 24 horas, via
como os médicos tratavam os pacientes. Era quase na base do chute, aos berros.
Mas quando atendiam em seus consultórios, por planos de saúde era “um senhor
pra lá e um senhor pra cá”. Falsos esses médicos!
Quando
dirigi um órgão público na área social, tomei uma decisão: o médico ou o
dentista só podiam atender 12 pacientes em 4 horas, ou seja, um paciente a cada
20 minutos. Se fosse diretor de um hospital público, acho que adotaria a mesma
coisa, como também não permitiria enfermeiras atendendo pacientes com roupas
transparentes, mas não sei se isso seria possível, pois as políticas públicas
nessa área sempre são medidas pelas quantidades e não pela qualidade dos
atendimentos. Os médicos não têm culpa do que lhes acontecem. Eles são vítimas,
tanto quanto os pacientes!
Não
estou falando do médico que examina meu sangue aqui. Esse é ótimo. Sabiam que
ele também já foi reitor de uma universidade? Pois é! Foi reitor e depois quase
que o elegeram de novo. Não venceu porque reitora que concorria com ele, teve
mais votos entre professores. Ele teve mais votos entre os alunos! Graças a
Deus! O aluno é que importa!
Tinha
dito que nunca mais iria votar em político quando e se eu sair daqui com vida.
Voltei atrás. Sou um velho caduco e, em velho, não se confia muito não! Ora
digo uma coisa, depois digo outra! E assim vou levando minha velha vida cansada
e quase já esquecida!
Darei
um último crédito aos políticos. Não de ocasião que aparecem, dizem um monte de
bobagens pela televisão e o povo acredita. Minha avó já dizia – a miséria
reproduz a falta de educação que reproduz os políticos -. Pretendo contrariar a
filosofia de minha avó.
Droga será que nem internado me dão sossego!?
Acabei de saber que meu primeiro filho, um com minha namorada de infância, está
envolvido com drogas pesadas, procurou tratamento e quer ser internado.
Sócrates e Hesíodo estavam certos. Médico britânico, Ronald Gibson está certo
quando cita quatro autores de até 4 mil anos antes de cristo e na voz deles
afirma: “nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos”; por isso “não tenho mais
nenhuma esperança se a juventude assumir o poder de mando amanhã”.”Eles nem se
levantam mais quando uma pessoa idosa entra”. E olhem que estou falando de uma
geração perdida há mais de quatro milhões de anos antes de Cristo.
A mãe dele me contou isso mais eu não devia ter espalhado para vocês.
Não pegará bem para você, ela me disse ao final de sua conversa telefônica.
Quis saber dela como conseguiu o número de meu telefone pessoal. “Ora,
ora, você já foi uma pessoa famosa. É só perguntar que todo mundo sabe dizer!”.
Fiquei abismado com a informação: pelo passar dos anos – e botam anos
nisso! – pensei que já tivessem me esquecido, quanto mais guardado o número de
meu telefone. Prometi - já que não tenho muitas posses hoje – ajudá-la no
tratamento, mas completei: “como eu poder, ok?”. Ela concordou. “Estão está bem”, respondi.
Felizmente meu filho ficou tão doido com o uso de drogas que decidiu
procurar tratamento, antes que apareça em uma rua qualquer crivado de balas.
Agora ele vai ver como é horrível se internar em hospital! A comida é ruim, sem
sal e não tem gosto de nada, com poucas exceções de alguns poucos hospitais.
Mas acho que ele vai ficar em hospital público, se é que já existe hospital
público para tratar a dependência química. Mas acho que não existe!
Infelizmente! São apenas promessas de políticas para isso, feitas no auge das
disputadas. Mais prática mesmo que é bom, não tem nada!
Eu,
mesmo como Assistente Social, não consegui ver que meu primeiro filho estava se
envolvendo com drogas. Com o Estatuto do Menor, fiquei totalmente sem saber o
que fazer porque ao mesmo tempo o Estatuto tirou o poder familiar; não o assumiu.
Hoje não se pode falar nada contra um filho porque eles conhecem tudo de
direito; mas não sabem que todo direito emana de um dever que vem antes.
Durante
meus estudos, ainda adolescente, tinha palmatória de madeira na mão nas aulas
de matemática, se trabalhava e não tinha nada de exploração do trabalho
infantil. Hoje, tudo mudou para pior; uma pena! Não estou contra o Estatuto,
mas o certo é que o Estado não se aparelhou de forma adequada para poder
cumpri-lo.
Depois
que ela desligou, fiquei pensando em meu filho.
Foi fruto de uma relação que tive
com ela, aos meus 17 anos.
Eu era adolescente, ainda.
Vai ver que foi por isso que ele se envolveu com drogas!
Estudou nas melhores escolas; não queria que ele fosse igual ao pai dele
picolezeiro, engraxate, lavador de
carros, vendedor de jornais, estudou muito e foi alguém na vida...mas ele fez
tudo diferente: fugia das escolas para jogar, era agressivo, preguiçoso e não
queria nada com nada!
Tenho
uma teoria comigo: o homem devia nascer aos 90 anos, casar lá pelos 30 e se
aborrecer até morrer com a esposa ao seu lado!
Velho
é uma coisa estranha mesmo: quanto tem 15 anos, quer ter 30, quando tem 30 acha
que já viveu demais. O que diria eu então, que já passei dos 90, mas ainda me
acho um garotão sarado, com as pelancas todas arriadas nos baços, peito,
pescoço, mãos, saco, orelha que ficou maior e cheia de pelos. Decidi: se eu sair daqui, deixarei de
alimentar à falta de investimentos nas áreas da saúde, educação, políticas
sociais, de segurança, enfim, em todas as nossas políticas públicas. Portanto,
deixarei de votar e não volto mais atrás. Palavra de um velho que já viveu
muito, já experimentou muito, já escreveu muito e já votou muito!
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