segunda-feira, 23 de julho de 2012

A CIDADANIA COMO FATOR DE RESGATE SOCIAL



                          O conceito de cidadania é ambivalente, polêmico e dinâmico. Trata-se de um conceito estritamente associado à democracia, possui uma vinculação jurídica e uma ligação do ser social com o Estado democrático. Não há cidadão que não seja cidadão  que faz de um Estado, sentencia Dalmo de Abreu Dalari. A democracia é um princípio filosófico universal que vem de muito longe e de muito fundo, dos arcanos heurísticos de Platão que fez ressoar em A República o tom nitidamente estetizante e inédito do Direito e da Ciência Política. Os direitos só ganham substância em relação às leis humanas, ou seja, adquirirem significação dentro de uma comunidade política. A lei e o direito são inexoravelmente inseparáveis da presença de uma autoridade pública que a garanta. Fora do domínio de uma sociedade democrática e na falta de ma autoridade do Direito Positivo, é inócuo falar de direitos do cidadão. Admitir cidadania como uma categoria científica construída no processo de relações sociais implica a compreensão dos direitos como produtos que brotam da ordem da liberdade, a história e da democracia. Vive-se numa realidade social e política transpassada por classes antagônicas, o capitalismo convive lado a lado com a cidadania. Ambas as classes podem propugná-la, pois ricos e pobres são membros da sociedade. Em tempos mais recentes a cidadania vem sendo construída por dentro da teia de relações e da luta dos excluídos sociais, tendo em vista a possibilidade de universalização de direitos. Essa predisposição crítica frente à ordem estabelecida se estabelece no reino da política e em meio a um processo contraditório das relações sociais e das forças políticas em presença. É esse o solo das discussões de Carlos Costa, que nutre uma paixão pelos ideais republicanos e pela emancipação social. Homem de engajamento profundo na lide da administração de serviços socais, sensível ao clamor dos excluídos e poeta de fino lavor artístico, há muito tempo Carlos Costa libertou  das cadeias o ser auroral que dorme em nós, o homem político que habita na polis e na vizinhança do divino, como os heróis de Homero. Este livro é um convite à leitura atenta de um tema intrigante e atual que conduz o leitor ao palco da grande política, dando asas à imaginação coletiva magistralmente trabalhada pelo autor.

                                                                                                                                                                                                                                                       Inverno de 2005
Dra. Iraíldes Caldas Torres,
Professora no Curso de Serviço Social  da Universidade Federal do Amazonas Coordenadora do Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia


                        A cidadania possui uma heurística heterogenia. A tradição filosófica ocidental erigiu este conceito sob os pilares da vontade divina, da ordem do mundo, da razão e da natureza das coisas. O direito do cidadão enquanto direitos naturais eram transpostos para as comunidades políticas, sob a forma de direitos positivos, o que lhes assegurava a sua validade. Em sua acepção moderna, a cidadania é um conceito entre capital e trabalho. É construída pela classe operária na extensão dos conflitos sociais advindos da contradição entre o capital e o trabalho. Não é uma dádiva e nem um estado de repouso do espírito, é uma ação concreta que se estabelece em meio às contendas e sangrias desatadas no interior das sociedades democráticas. Postular uma igualdade humana básica é investi-la do direito de cidadania que, em ulterior sentido, significa garantir um conjunto de direitos civis, jurídicos, políticos e sociais. A cidadania é dinâmica, natural e fluida, ela se coloca no fio da navalha da correlação de forças entre as classes. Nesse processo histórico-social de for;as entre as classes alarga-se o âmbito da formação cultural, isto é, no campo da construção de formas de racionalidade, socialização de valores, informações e visões de mundo como uma condição para a formação de subjetividades coletivas. Convido o leitor a entrar nesta dança da cidadania trazida por Carlos Costa. Trata-se de uma leitura fascinante e necessária nos dias atuais para reposicionar o protagonismo histórico no nosso país.

SCORTECCI EDITORA , SP, 2005

INTRODUÇÃO
                        A Constituição de 1988 consagrou a cidadania como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil Contudo, a amplitude do conceito permite discussões variadas: cidadania ativa, cidadania regulada ou “estadania”, cidadania urbana, cidadania rural dos trabalhadores etc.
                        “A CIDADANIA COMO FATOR DE RESGATE SOCIAL” é um livro que tenta responder uma questão aparentemente simples: como recuperar e reinserir na sociedade jovem em situação de risco social, fazendo uso de temas transversais da educação?
                        Durante sete anos, o assistente social Carlos Costa coordenou no interior do SEST/SENAT o desenvolvimento do Projeto “Serviço Civil Voluntário”, do Governo Federal e, durante três anos pesquisou e registrou com 700 jovens excluídos (negros, índios, homossexuais, apenados da Justiça, jovens prostituídos, jovens em baixa escolaridade e em risco social). Dos 700 jovens, 400 foram observados mais atentamente e lhes foram aplicados questionários a fim de mensurar através das respostas, como estavam se inserindo e como estavam mudando seus pensamentos sobre eles próprios e à coletividade.
                        Durante esse tempo, foram desenvolvidas e aplicadas várias atividades como as de saúde, esporte, teatro e lazer aos excluídos e, também, lhes eram fornecidos  lanches a todos.
                         Autor é formado em Jornalismo e Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas, e se dedica há vários ao trabalho de recuperação de jovens em risco social, para quem também dava palestras motivacionais.
                        A Constituição Federal, em seu artigo 205, estabelece que a educação é a verdadeira base para a transformação social é um direito de todos e um dever do Estado, da família e da sociedade como um todo. E deve visar sempre o pleno desenvolvimento da pessoa humana, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Contudo, com o fim dos cursos técnicos profissionalizantes isso ficou quase impossível porque o jovem que termina o ensino fundamental, com pouca base, nem sempre passa no vestibular e volta-se para um mercado de trabalho que o rejeita em função da sua falta de qualificação para exercer qualquer tipo de trabalho. Ou seja, o Estado não faz o que deveria ser feito. O jovem não aprende como deveria aprender e é reprovado na fase em que ele mais precisa: aos 18 anos.
                        A pergunta que o autor se faz é: esse artigo da Constituição está sendo verdadeiramente cumprido? Como fazer cumprir o artigo da Constituição com jovens excluídos, verdadeiros “doutores” em conhecimentos que lhes tira o direito de saber sobre Educação, Moral e Cívica ou Organização Social e Política do Brasil, matérias já extintas pelo Governo Federal, mas não substituídas, apesar de a “transversalidade da educação” ser apregoada como responsável pelo “fechamento” dessa lacuna. Mas isso não ocorre.
                        O processo de construção da cidadania, embora muito antigo, não tem fim e não se completa nunca porque, como afirma o professor Marco Aurélio Nogueira “onde quer que seja, existirão sempre homens e mulheres, grupos e indivíduos singulares, minorias e estratos particulares submetidos a algum tipo de humilhação, degradação, injustiça e opressão.”
                        A educação responsável e comprometida com as questões sociais do Brasil, contudo, pode ser o caminho mais curto para o fim da injustiça e da opressão, e a porta aberta para a construção de uma verdadeira cidadania.

CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
1.      A CIDADAIA AO LONGO DA HISTÓRIA
1.1.GRÉGIA, O BERÇO DA CIDADANIA
1.2.A CIDADANIA NO DIREITO ROMANO
1.3.INGLATERRA: 1215/1699
1.4.FRANÇA: 1789
1.5.BRASIL: 1988
2.      CAPITULO II
2.1.A CIDADANIA E A TRANSVERSALIDADE NA EDUCAÇÃO
2.2.A CIDADANIA E OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS
2.3.A CIDADANIA EDUCACIONAL
2.4.A CIDADANIA E A EDUCAÇÃO EM MANAUS
3.      CAPÍTULO III
3.1  O SERVIÇO CIVIL VOLUNTÁRIO
3.2. O RITO DE PASSAGEM
3.3. O SEST/SENAT: ENTIDADES EXECUTORAS
4.   CAPÍTULO IV
4.1. A CIDADANIA, NA VISÃO DOS JOVENS DO SCV
4.2. DEPOIMENTOS DOS JOVENS
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
                        Destinados a jovem a partir de 18 anos, dispensado do Serviço Militar, o Serviço Civil Obrigatório, implantado deforma experimental no Rio de Janeiro (1988/89), pela Comissão Nacional do Serviço Civil (CONASC) do Ministério da Justiça, tinha por prioridade “a preparação do(a) jovem para o trabalho e para a cidadania, entendida como participação social solidária em uma unidade democrática”.
                        O Governo Federal considera o SCV uma atividade cívica de caráter estratégico para o Brasil e coloca os jovens envolvidos em suas ações como agentes de cidadania,  pois a formação teórica e prática é voltada para o exercício da cidadania, entendida como direito e como responsabilidade.
                        O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE indica existirem 3,2 milhões na faixa etária dos 18 anos no Brasil, e cerca de metade deles é do sexo masculino. Desses, somente 10% são selecionados para o Serviço Militar, a cada ano. Diante disso, o Governo Federal considera que exista um universo de três milhões de jovens, de ambos os sexos, alvo do SCV.
                        O público alvo do SCV é definido pelo Governo Federal: são rapazes e moças até 18 anos completos ou a completar no ano de execução do Projeto. No caso dos homens, os excedentes do Exército que não trabalhem, não estudem, tenham uma escolaridade inferior à 8ª série do Ensino Fundamental e vivam em situação de pobreza crítica.
                        Segundo a obra “Desafios da Educação – Brasil 500 anos”, da pesquisadora Regina Sader, o Brasil conta hoje com mais de 17 milhões de analfabetos, ou seja, mais de 18% da população de 14 anos. Estima-se que hoje esse número já chegue hoje a 23 milhões, o que representa 14% da população que se acredita ser de 180 milhões de brasileiros.
                        Estatísticas do IBGE e do Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento da Infância – UNICEF indicavam que a evasão escolar e a de repetência escolar no ano de 1979 haviam crescido para cerca de 20% no Ensino Fundamental, caindo para 14% no ano de 1985. Essa estatística, embora apresentando decréscimo em 10% em seis anos, ainda é um dado a preocupante.
                        No ano de 1982, o Ministério da Educação divulgou um relatório revelando outros dados também preocupantes:
1.      Dos alunos matriculados na primeira série do Ensino Fundamental, apenas 20% concluíram o curso sem repeti-lo, ou seja, 79,8% tiveram que repetir de série;
2.      Em 1989, entre as famílias com renda de menos de um salário mínimo e meio, 72,7% matricularam seus filhos na Escola onde se conclui que a renda familiar é um fator decisivo na manutenção de crianças em sala de aula. Esse número sobe para 97% entre famílias com renda superior a dois salários mínimos;
3.      O Brasil possui menos de 200 mil Escolas ministrando o Ensino Fundamental para a população em idade escolar de até 14  anos estimada em mais de 51 milhões. Dessas escolas, 45% estão localizadas no Nordeste;
4.      O Ensino Médio é ministrado em pouco mais de 12 mil instituições, das quais 45% se concentram no Sudeste;
5.      O Ensino Superior é ministrado em 873 entidades, das quais 75% são particulares, e concentram 60% de todos os alunos que buscam o Terceiro Grau. E a região Sudeste é a que apresenta o maior número de alunos matriculados, com 55,7% do total.
           A cidade de Manaus, capital do Amazonas, segundo os números do Censo
Educacional realizado nos anos de 2000/2001 pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas,  160.848 alunos estavam matriculados  no Ensino Fundamental de 1ª 4ª séries no primeiro ano da pesquisa, contra 168.272 alunos no ano seguinte.  Das 160.848, 62.470 foram feitas na Rede Estadual de Ensino, 80.251 na Rede Municipal e 18.126 na rede privada. No ano seguinte, 64.361 matrículas foram feitas na rede estadual, 85.776  na rede municipal e 18.135 na rede privada.
                        No  Ensino Fundamental de 5ª a 8ª Séries, esse número foi de 156.834 no primeiro ano da pesquisa contra 173,926 no ano seguinte, representando um aumento de 0,09% no número de matrículas. Em 2000 foram feitas 99.399 matrículas na Rede Estadual, 610 na Rede Federal, 41.581 na Rede Municipal e 15.244 na Rede Privada. No ano seguinte, a Rede Estadual absorveu 112.166 matrículas, 640 na Rede Federal, 46.075 na Rede Municipal e 15.045 na Rede Privada.
                        A Constituição de 1988 determina que 18% do total de impostos arrecadados pela União sejam aplicados em Educação, cabendo aos Estados e Municípios a aplicação de 25% de tudo o que arrecadam. O que a Constituição determina, porém, não é cumprido pela maioria dos governantes.
                        Diante desses fatos, como se pode pensar em cidadania, substantivo feminino que dizer “qualidade de cidadão?” Como compreender o “cidadão”,  substantivo masculino que quer dizer “habitante da cidade, aquele que está no gozo de seus direitos civis e políticos de um Estado?” Como é possível interpretar “aquele que está no gozo dos direitos civis e políticos do Estado?”
                        O estadista inglês do século XVI, Thomas More, em Utopia, em grego lugar nenhum e o filósofo grego Platão, em A República, imaginaram um lugar onde todos seriam protegidos, teriam alimentação, vestuário, alojamento, tratamento médico, educação e onde ninguém trabalharia mais do que seis horas diárias, ou seja, teriam o pleno gozo dos direitos civis e políticos e a qualidade de cidadão. Os poetas Samuel Goleridge,  D.H. Lawrence e Robert Southey também sonharam com uma sociedade ideal, uma vida perfeita, um lugar perfeito para viver. A realidade, contudo, nos mostra que esse sonho nos coloca diante de um homem na qualidade de cidadão, mas que ainda não se realizou em sua plenitude.
                        Resgatando a história, o professor de Direito Privado da Fundação Getúlio Vargas, Paulo Mendonça, citando Spengler  afirma que na Idade Média já se dizia que o ar da cidade torna livre os homens e os gregos já relacionavam a liberdade de um povo ao fato de possuírem ou não uma ágora. A liberdade, aqui entendida como um exercício pleno dos direitos norteará este trabalho em todas as suas etapas porque se entende que sem a prerrogativa da liberdade é impossível se falar em cidadania e em resgate social.
                        Delimitou-se o século XVIII como o início do processo de análise da questão da cidadania porque foi a partir dele que se reformulou o entendimento das relações entre o Estado e os seus súditos, que passaram a chamar-se de cidadãos.
                        Naquele século, entendeu-se o Governo como algo decorrente da concordância dos governados. Esse marco histórico é delimitado pelas Revoluções Inglesa, Francesa e Americana.
                        A Revolução Inglesa limitou-se a arrolar alguns direitos próprios dos indivíduos; a Francesa apresentou uma inconfundível universalidade em suas declarações de direitos e a Americana colocou em sua única Constituição escrita em 1789, uma lista específica de garantias.
                         Dentro desses três marcos históricos, buscaremos compreender melhor a cidadania e a possibilidade de seu exercício ser utilizado na busca do resgate social, através do desenvolvimento do projeto Serviço Civil Voluntário.

1.    CIDADANIA AO LONGO DA HISTÓRIA
1.1. GRÉCIA, O BERÇO DA CIDADANIA
                        A humanidade deve aos gregos o moderno conceito de democracia. A própria palavra “democracia”, que nasceu nas polis ou cidades-estados como Atenas ou Corinto, significa poder popular. A democracia praticada na Grécia era, porém, muito diferente da atual acepção da palavra. Como as cidades-estados eram muito pequenas para que todos os cidadãos tivessem um papel ativo nas assembléias, onde se decidia a política a adotar, poucos participavam dela. Sobre esse fato, assim comenta Mossé, em Cidade Atenas. A História da Democracia.
Naturalmente, se  pensarmos no plano dos princípio ao dos fatos, constataremos algumas distorções. Na verdade, o povo era soberano, mas esta soberania exercia-se dentro de certos limites. É indubitável que foi por essa época  que se elaboraram as rigorosas normas relativas a ordem do dia e à prioridade das sessões da Assembléia; a maneira de se propor projetos de lei, e o procedimento para a sua discussão e aprovação”.

O filósofo ateniense Platão, em A República, advogou a monarquia
constitucionalmente limitada como a melhor forma de governo para as cidades-estados.. Dizia o filósofo que a oligarquia, a democracia, a demagogia e a tirania, seguir-se-iam uma à outra e a única forma de quebrar o ciclo seria entregar  o governo a reis filósofos.
                        A democracia grega, conhecida como o Governo do Povo, era limitada a cerca de 90% da população, formada por escravos, estrangeiros, mulheres e crianças que não tinham direitos políticos. Apesar disso, o princípio da democracia grega dizia que todos os cidadãos tinham os mesmos direitos perante as Leis. O período histórico conhecido como “séculos obscuros”, é pouco conhecido. Os registros mais aceitos desse período são os poemas épicos Ilíada  e Odisséia de Homero.
                        A partir de cerca de 800 até 500 a.C., as Leis reformistas de Sólon (600 a.C.), em Atenas, expandiram a democracia dando aos cidadãos pobres, alguns direitos sobre o Governo da cidade. Os gregos prestavam obediência às suas próprias cidades, mas possuíam um sentimento de unidade nacional frente à ameaças externas, como o caso da invasão persa.
                        Clístenes (510 a.C.) assumiu o poder em Atenas para aprofundar as reformas sociais e introduzir o regime democrático na cidade. No século V a.C., Atenas atingiu seu apogeu político com Péricles, que aperfeiçoou a democracia, conferindo à Assembléia dos Cidadãos (Ecláesia) poderes para deliberar sobre os problemas políticos.
                        Historicamente, os governantes Sólon e Péricles são citados como os responsáveis pela conquista da democracia na Grécia. Contudo, Mossé (op.cit),  afirma que “os atenienses somente adquiriram essa premência depois de uma lenta evolução, entremeada de violentas agitações”.
                        Péricles (495 A 429 a.C.), estadista ateniense e chefe do partido democrático que domina a vida política de 450 a.C. até sua morte, também um excelente orador, assim  se manifesta, em discurso para o povo, sobre essa questão:
                                  
Sabemos conciliar o gosto pelo belo com a simplicidade, e o gesto pelos estudos com a energia. Usamos a riqueza para a ação e não para uma vã ostentação de palavras. Entre nós, não é vergonhoso reconhecer a pobreza; é-o, bem mais, não tentar evitá-la. Os mesmos homens podem dedicar-se aos seus negócios particulares e aos do Estado;  simples artesãos podem ter bastante compreensões de política. Não consideramos o homem ocioso, senão somente aquele que é inútil. É por conta própria que decidimos nossos negócios e fazemos os cálculos exatos. Para nós, não é a palavra que nociva à ação, mas o não se informar pela palavra antes de se lançar à ação”.
O Governo de Péricles deu a Atenas uma época de relativo equilíbrio social, o que gerou um sensível aumento da população da Ática, tanto por causas naturais como devido à relativa facilidade com que nos anos que se seguiram às reformas de Clístenes, estrangeiros puderam integrar-se ao corpo dos cidadãos. Mossé (idem) diz que para por fim a essa situação, Péricles, em 541 a.C. fez aprovar famoso decreto reservando a qualidade de cidadão ateniense aos nascidos de pai cidadão e de mãe, ela própria filha de cidadão (Op.Cit. p.50).  Esse decreto tinha por objetivo limitar o número dos beneficiários das vantagens ligadas à qualidade de cidadão.
                        A democracia, herança dos atenienses à humanidade, que possibilitava a participação do povo na política, foi sendo aprimorada ao longo da história, ganhando outras formas. Foi à compreensão da palavra cidadania, que se dá participação plena e ativa do cidadão nos destinos de sua contribuição política à humanidade. Assim, conclui Claude Mossé:

(...) os atenienses, sobretudo durante os dois séculos em que exerceram a hegemonia do mundo Egeu, construíram uma civilização que hoje podemos considerar como uma civilização do homem (...) Os atenienses  foram, primeiramente cidadãos, e é isso que faz a grandeza de Atenas. Pouco importa que esses cidadãos tenham constituído apenas uma pequena parcela – talvez um décimo da população da Ática (...) Fazer parte dela (a cidade) significava que estava disposto a garantir sua defesa, mas também que se pretendia participar dos frutos (...) A conduta apolítica era inconcebível porque significava a renúncia àquilo que era a própria essência do ateniense: o pertencer ao corpo político, à cidade(...), a civilização que há 2.500 anos nasceu na orla do mar Egeu soube, em menos de dois séculos, elaborar um pensamento crítico e político  cujas ressonâncias têm seu lugar na história dos homens que farão o mundo de amanhã(op.cit.161,162).
O professor da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas de Paris, Georgesn Bordeau, autor do tratado de ciência política mais importante publicado depois da segunda guerra mundial, em seu livro “Le Democracia”,  é conclusivo quando afirma:

La democacia es hoy uma filosofia, um modo de vivir, uma religión e, casi assoriamente, uma forma de cobierno”(Op.Cit. p. 19).
                               1.2. A CIDADANIA NO DIREITO ROMANO
                        Narram vários livros de história, que a cidadania, enquanto conceito histórico foi um processo construído durante anos e anos e está inteiramente ligado ao papel que o Direito exerceu e continua exercendo dentro da sociedade. Os primeiros registros de cidadania foram feitos em Roma, quando os direitos públicos e privados só pertenciam aos cidadãos romanos, os quintas. Os estrangeiros, ou peregrini, não tinham a capacidade jurídica mais podiam adquirir propriedades e fazer testamentos pelos direitos deles. Os peregrini dediticci, ou inimigos vencidos, estavam privados do uso de seu direito de origem porque os romanos não lhes reconheciam a independência política. Eles se sujeitavam pura e exclusivamente às regras do ius gentium romano.
                        Esses estrangeiros, os latinos, vizinhos de Roma, tinham uma posição especial e gozavam dos mesmos direitos dos romanos. Eles tinham o direito de votar nos comícios (ius sufragii) quando se encontravam m Roma e podiam comerciar e contrair matrimônio: ius commercii e ius conubii. Com a extensão da cidadania romana a toda a Itália, em 89 a.C., essa categoria de latinos deixou de existir. Como uma segunda categoria de latinos aparece, a dos latini coloniarii, que eram os das colônias fundadas por Roma e às quais fora dado o ius Latti, estes gozavam da capacidade de ter direitos privados (ius commercii e ius canubii), mas os públicos (ius suffragii e ius honorum). Essa categoria também desapareceu com a extensão da cidadania a todos os habitantes livres do império, por Caracalla, em 212 d.C. (constutio Antoniniana). Uma terceira categoria dos latinos passou a existir desde a lei Junia Norbana (19 d.C) e sobreviveu às demais.
                        Escravos alforriados pelos modos pretorianos ou mesmo contra as disposições restritivas  das leis de Augusto, adquiriram a posição de latinos e não de cidadãos romanos. Sua capacidade jurídica de gozo era mais restrita do que dos pertencentes às outras categorias de latinos. Só tinham, os latini Juniani, e os ius commercii inter vivos, o direito de serem sujeitos de relações patrimoniais entre vivos. Não podiam eles, pois, casar pelo ius civile, nem fazer testamento ou herdar. Diz-se que “viviam como livres, mas morreriam como escravos”(Salvianus, adv.avar 3.7). Por falecimento dos latinus Junianus, seu patrimônio era devolvido ao patrono, iure peculi, isto é, não a título de sucessão, mas como devolução próprio dono.
                        A cidadania romana era adquirida por nascimento de justas núpcias ou mesmo fora delas, se a mãe fosse cidadã no momento do parto. Os filho nascidos do matrimônio, se um dos cônjuges fosse estrangeiro, seguiam-se às condições de estrangeiro, de acordo com a Lei Minicia (Gai. 1.78). Adquiria-se a cidadania romana também pelos comícios por determinação dos magistrados e, mais tarde, pelos imperadores. A concessão podia ser feita a estrangeiro, quer em caráter individual, quer como medida de ordem geral como ocorreu com a extensão à toda a Itália em 89.a.C., e todos a todos os habitantes livres do império, em 212 d.C.
                        O cidadão romano, desde que preenchesse também o requisito de independência do poder familiar, tinha a plena capacidade jurídica do gozo. Assim, ele podia ter  totalidade dos direitos públicos e privados e as obrigações respectivas. Porém, perdia-se a cidadania pela liberdade, pelo exílio, pela deportação ou pela renúncia.
                        O direito romano definia o homem como livre ou escravo.
                        Os escravos não tinham direitos e nem possuíam relações familiares. A escravidão era um instituto reconhecido por todos os povos da Antiguidade e sua origem vem da guerra: os inimigos capturados passavam a ser escravos dos vencedores. Eram considerados escravos, também, todos os estrangeiros que pertencessem a um país que fosse reconhecido por Roma, ainda que não estivesse em estado de guerra. O mesmo se dava com o romano que caísse nas mãos do inimigo. Mas o cidadão romano que se tornava prisioneiro de guerra do inimigo,  ao voltar à pátria, recuperava automaticamente a liberdade e todos os direitos de cidadania que tinha antes de ser capturado. Isso se chamava de iuspostiliminii.
                        O escravo – afirmam vários autores - , não podia ser sujeito de direitos, por lhe faltar a capacidade jurídica do gozo. Não podia, também, ter direitos privados ou público. Sua união conjugal (conturbernium) não era “casamento” no sentido jurídico romano. Afirmam os estudiosos do assunto, que assim não haveria entre o escravo, a mulher e os filhos uma relação de parentesco, para fins de sucessão e outros. O escravo não podia ter patrimônio e tudo que viesse a adquirir pertenceria ao seu dono. Este detinha sobre o escravo, tão amplos poderes como sobre todos os demais de sua propriedade, podendo até aliená-los ou matá-los.
                        Mesmo assim, a condição humana do escravo – comentam os estudiosos do assunto – se destinguia de outras coisas do patrimônio do dono. O direito romano sempre reconheceu a personalidade humana do escravo (persona servilis). Ele também participava, desde a origem, do culto religioso da família. Seu túmulo era lugar sagrado à semelhança dos livres. Matar um escravo era crime, a que, já na República, correspondia a pena pública de homicídio, pela Lex Cornelia de sicariis. No período imperial,  o dono foi proibido de seviciar o escravo. Estes podiam impetrar a proteção junto aos magistrados. Do ponto de vista patrimonial – afirmam os estudiosos do assunto -, verificou-se também uma evolução ao escravo. Já na República  - concluem, o escravo podia possuir um pequeno pecúlio, cedido pelo seu dono, que ele geriria livremente.
                        Legalmente o pecúlio continuava a pertencer ao dono, mas era movimentada pelo escravo livremente como se fosse dele.
                        Afirmam, ainda, os estudiosos da matéria: os escravos libertos se chamavam libertos (libertinas ou libertas), mesmo assim seus direitos públicos continuavam limitados. No campo do Direito Privado, ainda encontrava-se sob o patronato do ex-dono. O patronato implicava uma relação de interdependência entre o ex-dono, patrono, e o ex-escravo, alforriado, liberto e até uma espécie de sujeição deste àquele. Do patronato – garantem esses mesmos autores da matéria -, decorriam direitos e obrigações recíprocas, mas sempre equivalentes entre as duas partes. Essa relação de patronato subsistiria enquanto o liberto vivesse não se transmitindo, porém, aos seus herdeiros. Por parte do patrono – garantem os estudiosos Bordeau, Gama, Magalhães, Mossé e outros – a relação passava aos filhos, no caso de o escravo morrer antes do liberto.  
                        Quanto ao conteúdo do patronato, incluía a ele o dever recíproco de prestar alimentos no caso de necessidade. O liberto passava a ter o nome do patrono e devia a ele respeito e reverência contínua (obsequium). Por isso, era-lhe proibido intentar ações criminais ou infamantes contra o patrono. E a propositura de qualquer outra ação contra ele, exigia a autorização prévia do magistrado.
                        Finalmente, além  de o escravo liberto ainda continuar devendo certos favores ou seu patrono (operae),  o patrono tinha o direito de uma sucessão legítima sobre os bens do liberto, visto que o liberto não tinha legalmente nem ascendentes e nem parentes colaterais. O pretor garantia ao patrono a metade da herança do liberto se morresse sem deixar filhos ou herdeiros.
                        Com o favor imperial chamado natalium resitiuo, cessava totalmente os direitos do patrono e a que o liberto adquiriu, retroativamente,  a posição de ingênuo,  pessoa nascida livre, que nunca fora escrava. O ius aurei anuli, era outro favor também conferido pelo imperador romano pelo qual se eliminavam as restrições político-sociais impostas aos libertos, como as de não poderem ser magistrados, não poderem ser nomeados senadores, não poderem servir as legiões do exército. Do ponto de vista dos direitos privados – observam alguns autores,  o ius aurei anuli eliminava, também, o impedimento matrimonial entre o liberto e uma pessoa de classe senatorial, mas não extinguia os direitos do patronato. Com ele, o liberto passava a ser um quase ingênuo, afirmam os estudiosos do assunto.
                        Ficavam livres por lei, a título de punição do dono (idictum Claudii), os escravos velhos e doentes. A título de recompensa, o escravo que delatasse o assassino de seu amo recebia uma Senatusconsultum Silanium.
1.3. INGLATERRA: 1215/1699
                        A Magna Carta da Inglaterra  de 1215, assinada pelo rei João, sob a ameaça de uma guerra civil, também conhecida como a “Grande Carta da Liberdade Inglesa”, é considerada a primeira declaração de direitos fundamentais da figura humana registrada na história. Devido a omissões e alterações, foi reestruturada em 1216 e 1217 e finalmente em 11 de fevereiro de 1225 recebeu formas definitivas das mãos do Rei Henrique III, após ter sido reconhecido como Rei pelo Papa Latrão  IV.
                        A Carta Magna garantia liberdade e diretos à Igreja, dizia que o homem livre não poderia ser punido com uma grande pena por um pequeno delito, não poderia ser detido, encarcerado, desapossado de seus bens, colocado fora da lei  ou molestado, senão em virtude de um julgamento legal, por seus pares. Constava na carta que “não venderemos, nem recusaremos, nem diferenciamos o direito e a justiça etc. Os barões elegeram 25 dos seus membros ‘para guardião da Carta’,  segundo descreveu o desembargador Antônio José M. Feu Rosa, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo  in artigo publicado na revista jurídica Consulex.
                        Em seguida, ainda na Inglaterra, vieram o Habeas Copus Act, em 1679, e a Bill of Rights,  de 1688. Pela Carta Magna, todo cidadão inglês passou a ter direito de ser confrontado com as testemunhas de acusação, de arrolar testemunhas em sua defesa e de ser assistido por um advogado para sua defesa.
                        Os princípios liberais esboçados no século XVII presentes na Revolução Inglesa de 1688, aboliu os abusos do poder real e definiu com clareza as relações entre o monarca e os representantes do povo; reformularam o entendimento das relações entre o Estado e os seus súditos, que passaram a chamarem-se cidadãos, desde que se entendeu o governo como algo decorrente  da concordância dos governados. Os cidadãos  passaram a ser todos os habitantes da cidade que estavam em gozo de seus direitos civis e políticos.
                        Segundo afirma o desembargador Feu Rosa, há sempre um processo de evolucionista em defesa da liberdade, propriedade privada, segurança, direito de resistência contra os abusos do Estado e liberdade de consciência e de religião.  “A partir da origem inglesa, os direitos  humanos receberam concepção mais ampla e finalmente se consolidaram nos Estados Unidos, quando a Constituição Federal de 17 de setembro de 1787, com suas primeiras emendas, abriu o caminho, logo seguida pelas Constituições de Virgínia e Pensilvânia e várias outras”, conclui o autor.
                        Os cidadãos passaram a se fazer presentes nos assuntos do Estado e com a Guerra Civil norte-americana de Independência, que inovou a estrutura do Estado, criando o federalismo e o presidencialismo,  e na França, onde as discussões eram em torno do racionalismo político para definir os fundamentos da obediência, da legitimidade do poder e da reformulação da sociedade, segundo um esquema não feudal, conforme afirmam Saldanha e Gama em suas obras.
                        Saldanha informa que a origem das cidades, nas diversas civilizações, se deu com o rompimento com o estágio rural, possibilitando o surgimento do termo cidadania, ou “qualidade de cidadão”.  Para Saldanha, com o surgimento da cidade é possível ver “(...)o advento de uma mentalidade urbana como condicionadora de novas estruturas, em economia e em direito, em religião, em ética e em estética” (idem, p. 72).
                        A Revolução Inglesa limitou-se a arrolar alguns direitos próprios dos indivíduos e do parlamento. A Constituição americana (1787), por sua vez, listou as garantias. Com a Revolução Francesa (1789), que proclamou os direitos individuais e as liberdades públicas,  a cidadania ganhou uma maior dimensão e um caráter de universalidade.
                        Historicamente, pode-se afirmar que o entendimento objetivo do termo cidadania firma-se no século XVII. Contudo, registros feitos pelo professor Marcelo Saldanha da Gama in  Educação na Grécia Antiga, mostra que já no século VIII a.C., na Grécia Antiga, há registros de direitos de cidadania entre determinadas classes. Em Esparta, Gama informa que os Dórios gozavam de direitos de cidadania, em Atenas, o povo participava diretamente do Governo por meio de grandes assembléias.
                        Ele acrescenta:
O povo ateninse adorou uma nova constituição     no sentido democrático que assegurava a todos os  homens livres o direito de participação  na vida pública, ao contrário do que acontecia com a lei antiga que só concedia o direito de cidadania a alguns indivíduos privilegiados”(Ibidem, p. 17),

                        As revoluções liberais do século XVII, portanto, recolocaram as relações entre o indivíduo e o Estado de forma mais objetiva. Reformando o estatuto das funções estatais, essas revoluções permitiram a construção do Direito Constitucional moderno e o surgimento, mais tarde, do Estatuto Social e Democrático, que se firmou nas constituições do México (1917( e da Alemanha (1919), que ampliaram os direitos fundamentais do homem e acrescentaram ao núcleo desses direitos no Estado liberal novos direitos sociais, econômicos e culturais. A Constituição (1988) do Brasil contempla esses  como “os direitos sociais”.
                        Magalhães afirma que a questão dos “direitos sociais” não pode ser entendida como “mera ampliação de direitos e garantias”, porque o

O Estado nesse sentido, interviria na economia quando necessário, para fazer correções e assistiria aos necessitados nos momentos de crise econômica (...) Na verdade, os direitos sociais são verdadeiras garantias socioeconômicas dos direitos individuais e políticos (...) As garantias socioeconômicas são meios de que o indivíduo deve dispor em uma sociedade (...) para poder ser livre” (Idem. pág. 101).
                        Liberdade, ser livre plenamente, é o pressuposto maior para que o homem possa exercer sua cidadania. Sem o estatuto da liberdade, sem a garantia dos direitos individuais, sem uma liberdade política e sem democracia, torna-se impossível falar em cidadania, citoyennete, palavra de origem francesa que define a palavra cidadania, porque, segundo Bobbio, citando Ordonis, deveria ser a função primordial do Estado o direito de

promover condições para a igualdade e   liberdade (...) removendo obstáculos que impedissem a plenitude do exercício desses direitos e facilitasse a participação dos cidadãos na vida política, econômica e cultural de um país”(Idem, p. 102  
1.4. FRANÇA: 1788
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO
                        A Revolução Francesa (1788), resultado de um conjunto de conflitos e de convergências marcada por uma série de lutas distintas, unificadas por alguns elementos comuns, aprofundou as discussões sobre a questão do cidadão e proclamou  a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão que considerava como direitos fundamentais mais importantes à propriedade privada, a segurança e o direito à resistência contra os abusos do Estado.
                        O preâmbulo da Declaração, assim se coloca:
“Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas da infelicidade do povo e da corrupção dos Governos, resolvem expor, em uma Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem; a fim de que esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre incessantemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do  poder legislativo e do poder executivo, possam ser a todo momento comparados com o objetivo de qualquer instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações cidadãos, fundadas doravante sobre princípios simples e incontestáveis, resultem sempre na manutenção da Constituição e na felicidade de todos. Em conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão”.
                        Os acontecimentos revolucionários registrados na França, uma das grandes potências mundiais naquela época, ao lado da Império Austro-Húngaro, Inglaterra e Rússia, repercutiram em todo o mundo e os princípios anunciados, com somente 17 artigos, foram  logo incorporados às Constituições de quase todos os países e povos.
                        A limitação dos poderes do Estado, igualdade ante a lei, liberdade pessoal, inviolabilidade do domicílio, direito ao juiz legal, proibição de Tribunal de exceção, inviolabilidade da propriedade privada, liberdade de religião, sigilo da correspondência, livre manifestação de opiniões, liberdade de reunião e muitas outras manifestações de direitos marcaram profundamente a vida do cidadão, desde 1789.
                        A relação entre o Estado e seus governados deixou de ser abusiva e passou a ser de cidadania, com direitos e deveres claros.
                        As Constituições da  Alemanha (1748) e do México (1917) e, sobretudo,  Constituição de Weimer (11.08. 1919), que criou o Estado Federal, seguindo os mesmos princípios franceses, criaram o “Estatuto Social  e Democrático de Direito”, ampliando os direitos fundamentais e acrescentando ao núcleo desses direitos no Estado liberal novos direitos sociais, econômicos e culturais.
1.5. BRASIL
1988 – A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
Depois de quase três  décadas de regime militar, com Atos Institucionais e outras ações contra os direitos individuais do cidadão, em 1988 o Brasil ganhou uma nova Constituição, chamada de a Constituição Cidadã presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, por incorporar em seu bojo direitos socioeconômicos para o povo.
O professor de Teoria Geral do Direito Constitucional, José Luiz Quadros Magalhães, em sua obra “Teoria Geral do Direito Constitucional (1997),  diz que a Constituição do Brasil estabeleceu um novo conceito de indivíduo, que ultrapassa o conceito liberal, segundo ele,

“...é um indivíduo portador de todos os direitos que possam permitir a sua completa integração à sociedade em que vive. É o indivíduo que não tem apenas o direito à sobrevivência à vida biológica, mas o direito à vida com dignidade, com trabalho e justa remuneração (...) Não há liberdade política sem democracia econômica e social (...)Um pressupõe outro necessariamente”(Op.Cit. p. 101).
                        O professor Jaime Ordoñes, em seu livro Direchos Fundamentales y Consticion (1988) ressalta que o trabalho do Estado  não se limita à tarefa de tutelar direitos fundamentais para estes sejam efetivados. Citando Norberto Bobbio, ressalta a necessidade de que ocorra a função primordial do direito,

onde, através de medidas positivas, se buscaria promover  condições para que a liberdade e a igualdade fossem efetivas, removendo obstáculos que impedissem a plenitude do exercício desses direitos e facilitasse a participação dos cidadãos na vida política econômica e cultural de um país (Op.Cit. p. 98).

                        No Brasil pós-Constituição Cidadã, a democracia participativa é uma realidade, permitindo o exercício diário da cidadania, enquanto idéia de participação dos indivíduos na construção do seu futuro. Considerando a indivisibilidade dos direitos humanos, a democracia social dá ao cidadão o direito de construir o seu próprio modelo de democracia social e econômica. O direito à cidadania é uma realidade constitucional, mas precisa ser exercitado através da livre formação de consciência política, filosófica e religiosa, ou seja, como diz Magalhães (op.cit. 107), através

...de uma democracia política participativa, na qual o indivíduo tenha voz, fala e comunicação. Isso implica que, para ter voz o indivíduo precisa de canais constitucionais para ser ouvido (...) Para ter fala, o indivíduo deverá ter discurso (...) que pressupõe, por sua vez, a educação. O direito à educação passa a ser direito democrático, sem o qual a democracia se inviabiliza. Finalmente, a comunicação, que é fundamental no processo democrático”(pag. 107).
                        De acordo com o pensamento de Magalhães, muitos direitos não são conferidos ao indivíduo como ser humano que vive no Estado, mas ao cidadão, àquele que participa da vida do Estado. Fica claro, portanto, que a questão da cidadania não é apenas a conquista desses direitos dentro do Estado, mas seu exercício pleno em busca desses direitos já garantidos. Como exemplo, o direito de petição e os direitos políticos, bem como o direito de voto, não cabem todos, indistintamente, mas apenas e tão-somente aos cidadãos.
2. A CIDADANIA E A TRANSVERALIDADE NA EDUCAÇÃO
2.1. A CIDADANIA E OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS
                        De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, faz-se necessário “compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade,  cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si mesmo respeito”. O primeiro objetivo dos parâmetros curriculares nacionais representa a essência dos ensinamentos do Projeto Serviço Civil Voluntário – SCV, que busca na educação e participação comunitária um referencial de cidadania para os jovens em risco social.
                        O Ministério da Educação e do Desporto afirma que o papel fundamental da educação no desenvolvimento das pessoas e das sociedades amplia-e ainda mais no despertar do novo milênio e aponta para a necessidade de construir uma escola voltada para a formação de cidadãos.
                        Os Temas Transversais  – Ética, Maio Ambiente, Pluralidade Cultural, Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo – estão presentes na proposta de desenvolvimento das ações do Projeto SCV. A forma de desenvolvê-los, elegendo as questões locais e objetivas como prioridades e evidenciando a realidade da comunidade envolvida nas ações, é fator preponderante para o sucesso das atividades, permitindo que “os alunos possam desenvolver a capacidade de se posicionar ante as questões que interferem na vida coletiva, superar a indiferença e intervir  de forma responsável”, como bem define a finalidade dos Temas Transversais.
                        Discutir questões sociais na perspectiva da cidadania exige que o educador esteja integrado à realidade da comunidade em que atua e, ao mesmo tempo, seja um crítico dessa mesma realidade, permitindo aos alunos a construção de uma sociedade plena, reconhecendo seus direitos e seus deveres e se vendo como um sujeito ativo do processo de mudanças. A formação histórica do professor no Brasil, contudo, se distancia muito da realidade social, fazendo com que

(...) de acordo com as tendências predominantes em cada época, essa formação voltou-se para a concepção de neutralidade do conhecimento e do trabalho educativo”
como afirma os princípios dos Parâmetros Curriculares da Educação.
                        O Ministério da Educação e do Desporto admite a falha no processo de formação o professor voltado para o ensino da cidadania. Mas entende que é

possível afirmar que o debate sobre as questões sociais e a eleição conjunta e refletida dos princípios e valores, assim como da formulação e implementação do projeto educativo já iniciem um processo de mudança”(p.32).
                        Embora se sabendo que a Escola não é o único lugar de reprodução de relações de trabalho alienadas e alienantes, também se sabe que é preciso investir mais na formação e qualificação do professor,  a fim de dar a ele um conhecimento mais profundo sobre as questões sociais, como define Marilda Iamamoto, em seu livro  “Questões Sociais no Brasil (1982), garantindo que as questões sociais datam desde 1929, com o processo de industrialização iniciado no Governo Getúlio Vargas.
2.2. CIDADANIA EDUCACIONAL
DIREITO DE TODOS E UM DEVER DO ESTADO
                        A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) destaca objetivamente os direitos civis e políticos dos cidadãos, dentro da estrutura e fundamentos do Estado e explicita claramente que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário existem para garantir os direitos sociais e individuais. De acordo com o art. 1º da Constituição, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo são os fundamentos do Estado Democrático de Direito.
                        Um dos direitos garantidos pela Constituição é o da educação, princípio fundamental do exercício pleno da cidadania. De acordo com seu artigo 205º “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
                        O Artigo 208º da CF complementa, ainda que “é dever do Estado a Educação e será efetivada mediante a garantia de I – Ensino Fundamental obrigatório e gratuito para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria; II – progressiva universalização do Ensino Médio gratuito; III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; V – acesso ais níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI- oferta de ensino noturno regular, adequando às condições do educando; VII – atendimento ao educando, no Ensino Fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
                        A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem-estar de todos, sem preconceitos de ordem, raça, sexo, idade ou qualquer outra forma de discriminação, também são objetivos da República Federativa do Brasil, segundo o artigo 3º da Constituição.
                        Claramente colocados no texto constitucional, os fundamentos que norteiam os princípios da cidadania são direitos desconhecidos por uma grande parcela da população, principalmente para os que não possuem qualquer tipo de acesso aos meios de comunicação informativos. O próprio Ministério da Educação, no texto introdutório aos Parâmetros Curriculares Nacionais – Temas Transversais, admite essa verdade ao afirmar que
                                                          
“(...) longe de serem expressão de realidade vigentes, correspondem muito mais a metas (...) Sabe-se da distância entre as formulações legais e sua aplicação; e a prática dos direitos por parte dos cidadãos. O fundamento da sociedade democrática é a constituição e o reconhecimento de sujeitos de direito”(Op.Cit. p. 19).
                        As mais diversas sociedades, ao longo de suas histórias, têm se procurado dar uma definição própria para a questão de quem tem direito e tem deveres. Essa construção, social e histórica sempre recebeu respostas contraditórias, dependendo do momento histórico da relação entre a sociedade e o Estado, que pode ser marcado por lutas, rupturas, descontinuidades, avanços e recuos. As lutas sociais, em todas as fazes a história, têm sido as responsáveis pela ampliação dos direitos civis, políticos, sociais e culturais.
                        Historicamente, direitos humanos e liberdades fundamentais – consequentemente, cidadania, foram considerados como direitos individuais próprios de cada um, e não direitos da coletividade. Juristas e outros estudiosos têm se posicionado, contudo, de forma contrária a esse entendimento. Eles entendem que estes são direitos coletivos, próprios dos cidadãos. Dentro desse entendimento, está enquadrada a educação que, ao promover debates transversais, abordando os principais problemas da sociedade, fará com que a cidadania seja compreendida pelos alunos, a partir de um
(...) produto de histórias sociais protagonizadas pelos grupos sociais, sendo nesse processo, constituída por diferentes tipos de direitos e instituições. O debate sobre questão da cidadania é hoje diretamente relacionado com discussão sobre o significado e o conteúdo da democracia, sobre as perspectivas e possibilidades  de construção de uma sociedade democrática”
conforme consta em texto do Ministério da Educação, na apresentação dos temas transversais dos Parâmetros Curriculares da Educação Nacional. E texto completa ainda que só se deva falar de cidadania com democracia.
                        A contraditória sociedade brasileira, construída por diferentes grupos sociais e raças, plural e polissêmica, resultado de um processo histórico, possui diferentes pontos de vista e projetos políticos, permitindo compreender porque seus limites também são contraditórios. O Ministério da Educação, ao admitir essa realidade social, elegeu a cidadania como eixo da educação escolar, colocando-se contra valores e práticas sociais que desrespeitem aqueles princípios, comprometendo-se com as perspectivas e decisões que os favoreçam, e admitindo que a educação para a cidadania requeira que questões sociais sejam apresentadas, discutidas, compreendidas e transformadas em ações práticas em busca da superação.
2.3. CIDADANIA E A EDUCAÇÃO, EM MANAUS
                        O Estado do Amazonas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – para definição da População Economicamente Ativa – PEA, do ano 2000, conta atualmente com uma população de 2.389.279 habitantes, e com uma taxa de crescimento urbano em torno de 2,78%. A cidade de Manaus, que concentra a maior população, possui aproximadamente 1.7 milhões de habitantes. A Secretaria de Estado da Educação e Qualidade de Ensino, do Governo do Estado, possui cerca de 16 escolas que oferecem o Ensino Fundamental. Entre matrículas nas Redes Estadual e Municipal de Ensino, em 2001, estão sendo atendidos 384.198 alunos nas oito séries do Ensino Fundamental, de acordo com dados do Departamento de Estatística da Secretaria de Educação.
                        O censo de 1999 do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, a cidade de Manaus apurou que naquele ano existiam 160.848 alunos matriculados no Ensino Fundamental de 1ª a 4ª séries. Desse total, 62.470 matrículas foram feitas na Rede Estadual de Ensino; 80.251 na Rede Municipal e 18.126 na rede privada. No ano seguinte, o número de matrículas em todas as redes subiu para um total de 168.272 alunos.
                        No Ensino Fundamental de 5ª a 8ª séries, esse número foi de 156.834 no ano de 1999 contra 173.916 no ano seguinte, representando um aumento de 0,09%, de um ano para o outro. Em 2000 foram feitas 99.399 matrículas na Rede Estadual, 610 na Rede Federal, 41.581 na Rede Municipal e 15.244 na Rede Privada. No ano seguinte, a Rede Estadual absorveu 112.166 matrículas, 640 foram feitas na Rede Federal, 46.075 na Rede Municipal e 15.045 na Rede Privada.
                        A pesquisadora (Op.Cit), Regina Sader, informa que o Brasil  conta hoje com 17 milhões de analfabetos, ou seja, mais de 18% da população acima de 14 anos. Estima-se esse número já chegue a 23 milhões, o que representa 14% da população de 180 milhões de habitantes no Brasil.
                        No Estado do Amazonas, a Secretaria de Educação não possui dados atualizados sobre o analfabetismo e trabalha com dados coletados há mais de 10 anos.
                        Estatísticas do IBGE e do UNICEF indicavam que a evasão escolar e a repetência no Brasil,  no ano de 1979 havia sido crescido para cerca de 24% no Ensino Fundamental, caindo para 14% nos anos seguintes. Essa estatística, embora apresentando um decréscimo de 10% em seis anos, ainda é um dado preocupante.
                        Os números da educação no Brasil, revelados em 1982 pelo Ministério da Educação, apresentam dados preocupantes. Dos alunos matriculados na primeira série do primeiro grau, apenas 20,2% concluíram o curso sem repeti-lo ao menos uma das séries, ou seja, 79,8% tiveram que repetir uma das séries.
                         Em 1989, entre as famílias com renda de menos de um salário mínimo e meio, 72,7% matricularam seus filhos na Escola. Este dado permite concluir que a renda familiar é um fator decisivo na manutenção de crianças em sala de aula porque entre as famílias com renda superior a dois salários mínimos, 97% matricularam seus filhos.
                        Os dados do Ministério da Educação informam, ainda, que no Brasil existem menos de 200 mil escolas, ministrando o Ensino Fundamental para uma população em idade escolar de até 14 anos, estimada em 51 milhões. Dessas escolas, 45% estão localizadas no Nordeste. De acordo ainda com a mesma fonte, o Ensino Médio é ministrado em pouco mais de 12 mil instituições, das quais 45% se concentram no Sudeste.
                        Um total de 873 entidades de Ensino Superior, das quais 75% são particulares, existem no Brasil. As entidades particulares concentram 60% de todos os alunos que buscam o Terceiro Grau. A Região Sudeste é a que apresenta o maior número de matriculados, com 55,7% do total de alunos.
3. O SERVIÇO CIVIL VOLUNTÁRIO, EM BUSCA DA CIDADANIA.
3.1 – UM RITO DE PASSAGEM
                        Reeducar, ressocializar e reintroduzir os menos nos seios de suas famílias e, principalmente, da sociedade, através da qualificação profissional, prestação de serviços comunitários e o retorno deles ao ensino regular, são as metas principais  do SCV, criado no Governo Federal no âmbito do Programa Nacional de Direitos Humanos, em 1996, para atender a um universo de mulheres e homens de 18 anos, dispensados do serviço militar.
                        O Programa SCV tem por eixo a elevação da escolaridade ao nível do Ensino Fundamental, que é um direito constitucional, o desenvolvimento de valores de cidadania com participação e solidariedade, permitindo oportunidades concretas de trabalho e geração de renda.
                        Esses três eixos sociais encontram-se presentes também nos Parâmetros Curriculares da Educação Nacional, que se orientam pela dignidade da pessoa humana, igualdade de direitos, participação e co-responsabilidade pela vida social. A discussão de temas sociais nas escolas permite a tomada de decisões pela própria comunidade e o professor se apresenta como um agente de cidadania.
                        Concebido como um rito de passagem para a maioridade, o SCV é desenvolvido como um espaço singular para respeito à diversidade, a promoção da igualdade e o cultivo da cidadania, segundo informa o Ministério do Trabalho:
O Programa deve praticar ações afirmativas ou discriminação positiva em matéria de gênero, raça, cor, necessidades especiais e outros fatores que geram exclusão social e do mercado de trabalho. Isso quer dizer que, quando mais vulnerável o/a jovem, mais sujeito/a à discriminação, maior a preferência de acesso ao SCV. Ou seja, o SCV deve facilitar e promover a inclusão de jovens que não passariam pelos filtros da seleção usual de qualificação profissional, públicas ou privadas (Op.Cit. p. 104/105 – Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador – Brasília – abril/2001).
                        Os participantes do SCV são jovens selecionados em comunidades que apresentam alto risco social, indicado pela baixa renda per capita, baixo índice de escolaridade e elevados índices de violência. Os rapazes, excedentes do serviço militar, e as moças na faixa etária de até 28 anos completos ou a completar no ano da execução do SCV, com escolaridade inferior à 8ª série do Ensino Fundamental, estar fora do mercado de trabalho e da escola e viver em situação de pobreza crítica.
                        As vagas são divididas para que também beneficiem pessoas portadoras de necessidades especiais.
                        O desenvolvimento do SCV é estruturado através de cursos, treinamentos, seminários, oficinas, estágios e atividades práticas em torno de três eixos: elevação da escolaridade, qualificação profissional, direitos humanos/serviços comunitários. O Guia Planfor 2001, publicado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, dentro do qual está inserido o SCV, diz:
                                                           “ a) ELEVAÇÃO DE ESCOLARIDADE:
·         Deve ser entendida como formação, inclusive à distância, e orientação para prestação de exames supletivos do Ensino Fundamental, visando à obtenção do certificado conhecido pelo MEC (Ministério da Educação e Cultura);
·         Tempo de dedicação a esses componentes, no SCV, deve ser utilizado para orientar e encaminhar o/a jovem a programas de ensino supletivo, preferencialmente modulares e / ou à distância, oferecidos pelo Estado, Município ou entidade como Sesi e Telecurso 2000, monitorar e apoiar e/a jovem no estudo de apostilas para prestar exames na época adequada;
·         Não deve ser confundida nem substituídas pelas “habilidades básicas” dos programas de qualificação – embora possam reforçar e complementar os programas supletivos;
·         Há grande flexibilidade nos esquemas de exames/certificação do Ensino Fundamental. Por isso, sua duração vai depender do nível atingido pela população alvo, podendo, inclusive, ultrapassar a realização do Programa;
·         Indispensável buscar parcerias para sua realização, com os órgãos municipais, estaduais e o setor privado.

·         B)  DIREITOS HUMANOS/ SERVIÇOS COMUNITÁRIOS;

·          os conteúdos de direitos humanos, cidadania e serviços comunitários devem ser planejadas com fluxo na realidade público-alvo local, adaptando os conteúdos definidos pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CONASC;

·         Os serviços serão prestados pelos jovens uma forma de aprendizado das diferentes habilidades, em preparação concreta para o exercício da cidadania e mundo do trabalho, inclusive na forma de estágios;

·         Exigem concretização de parcerias com órgãos governamentais e não governamentais, incluindo empresas privadas;

·         o tipo de serviço prestado deve ser definido segundo necessidades de cada comunidade, com a participação dos próprios jovens, sob a supervisão dos executores, de acordo com as diretrizes do CONASC;

·         é expressamente vedada a utilização dos jovens como mão-de-obra “grátis” para serviços públicos ou privado.

·         C) QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL:

·         Significa preparação para oportunidades de trabalho e geração de renda existentes na comunidade, por meio do desenvolvimento de habilidades básicas, específicas e de gestão;

·         os programas devem ser orientados pela demanda do mercado, ou seja, oportunidades efetivas de trabalho e geração de renda e nunca pela mera disponibilidade de curso nas entidades executoras;

·         orientação e encaminhamento ao mercado de trabalho – na forma de estágios, associações, cooperativas, micro empreendedores e outras que se apresentem – devam ser vistas como etapa final e necessária de qualificação, de acordo com as diretrizes do PLANFOR;

·         Na medida do possível, deve garantir aos / às jovens a comprovação de competências, conhecimentos e habilidades adquiridos, mediante certificados, atestados ou diplomas, que possam ser utilizados no mercado de trabalho e/ou como créditos no ensino técnico (op.cit. 105/106).

                            O guia PLANFOR?2001e acrescenta, ainda, que para viabilizar as atividades e conteúdos, o programa SCV deve ter duração total de pelos menos 600 horas, distribuídas ao longo de seis meses de sua duração garantindo, assim, 100 horas/aula de qualificação profissional, 200 horas para direitos humanos/cidadania e serviços comunitários e 300 horas para ações voltadas à elevação de escolaridade. Esse tempo exigido para a elevação da escolaridade e certificação do Ensino Fundamental depende das séries atingidas pelos alunos e da modalidade de ensino supletivo, ensino regular, ensino a distância etc.
                        Devido  ao fato de ser um programa direcionado à jovens sob risco social, o SCV se apresenta de forma flexível e democrática em sua execução, permitindo eu as ações sejam desenvolvidas segundo os interesses e necessidades da comunidade e dos participantes.
                        Contudo, ele não pode fugir dos eixos principais de ações presenciais de qualificação profissional, formação em direitos humanos e cidadania, elevação de escolaridade e prestação de serviços, oportunidade em que os jovens desenvolvem atividades estabelecidas a partir de suas próprias vivências, sob a supervisão da entidade executora, em campanhas e atendimentos de interesse público, na comunidade, município ou Estado, conforme orienta o Guia Planfor, que lista uma série de ações que podem ser desenvolvidas, objetivando a participação dos jovens na prestação de serviços comunitários.
                        Durante a execução do SCV, o Ministério do Trabalho e Emprego determina um processo de monitoramento e de avaliação externa. O monitoramento se dá através de supervisão operacional contratada pelo próprio Ministério, com visitas técnicas às executoras e aos locais dos cursos. A avaliação externa aborda o SCV como estudo de caso, contemplando a eficiência e efetividade social.
                        Na avaliação da eficácia, são medidos os níveis ou grau de aproximação entre os projetos implantados e as diretrizes de focalização do público alvo, duração e conteúdos dos programas, entidades executoras, financiamento e custos, metas e outros aspectos, estabelecidos no termo de referência do SCV. Ao avaliar a eficiência, são medidos os resultados do SCV para os jovens, suas famílias e comunidades. A efetividade social é identificada pelo alcance do SCV como política pública voltada para a construção democrática de uma política para a juventude, orientada pela igualdade de oportunidades, fortalecimento da cidadania e direitos humanos.    
3.2. SEST/SENAT, AS PERCEIRAS
                        O SEST – Serviço Social do Transporte e o SENAT – Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte, são entidades privadas regidas pela Lei 8.706, de 14 de setembro de l993, regulamentadas pelo Decreto n. 1.007, de 13 de dezembro de 1993,  organizadas e administradas pela Confederação Nacional do Transporte – CNT, com sede em Brasília.
                        Em Manaus, as duas entidades são administradas pela FETRANORTE – Federação das Empresas de Transportes Rodoviários da Região Norte, com abrangência aos Estados do Amazonas, Pará, Acre, Roraima e Amapá e com Unidades Operacionais nas cidades de Manaus, Belém, Macapá e Boa Vista.
                        As entidades SEST e SENAT têm por objetivos desenvolver programas voltados à promoção de aprendizagem e promoção social aos trabalhadores em transporte, trabalhador autônomo e, em 1999, todos os serviços das entidades passaram a ser abertos também à comunidade em geral, permitindo a realização de parcerias com o Poder Público para a execução de programas mais amplos, como o SCV, do Governo Federal, concebido como

um rito de passagem à maioridade, com ênfase em dois aspectos: a preparação do/a jovem para o mercado de trabalho e para a cidadania, entendida como participação social solidária de uma sociedade democrática”( Secretaria de Políticas Públicas de Emprego, abril de 2009, pag. 99).
                        No ano de 1999, o SEST desenvolveu pela primeira vez o SCV, com a participação de 200 jovens. Desse total, apenas 3 abandonaram o programa, 27 conseguiram voltar ao mercado de trabalho após a qualificação com cursos profissionalizantes, e a grande maioria conseguiu a elevação da escolaridade. Para comprovar esse fato, o SEST,antes de efetuar o pagamento de uma bolsa no valor de R$ 60,00 (sessenta reais), exigia que os alunos apresentassem documento (declaração emitida pela escola) comprovando a frequência do aluno e/ou sua mudança de escolaridade.
                        Uma decisão interna tomada pela Coordenação do Projeto, mudou sua forma de execução: ao contrário de atender aos jovens em seus bairros, centralizou todas as atividades em um auditório no Centro Assistencial, chamado de Capit-16 – “Francisco Saldanha Bezerra”. Com isso a Coordenação do SCV passou a ter um maior controle sobre todas as etapas do processo e permitiu fazer algumas experiências inovadoras como a prática desportiva, sendo uma delas voltada à prática da cidadania.
                        No ano de 2000, o SENAT, com a mesma concepção iniciada pelo SEST, foi o responsável pela execução do SCV, coma participação de 400 jovens, dos quais 397 conseguiram chegar ao final. Um dos alunos, envolvido com o tráfico de drogas foi assassinado quando chegava à Escola, outro participante viajou para outro Estado com a família e um terceiro abandonou as atividades e não se sabe informar o por quê.
                        No início do projeto SCV, a Coordenação do Projeto, no primeiro dia, aplicou uma pesquisa sócio-econômica-cultural aos 400 alunos, sem que eles soubessem para qual propósito. Foram levantados dados como sexo, raça, cor, idade, naturalidade, tipo de deficiência, estado civil, condição de moradia, tipo de moradia, situação familiar, renda familiar, número de membros na família, situação econômica, grau de escolaridade, leituras mais apreciadas, tipos de músicas mais ouvidas, tipo de filme mais assistido, prática desportiva, condição do aluno perante a justiça e perspectivas do aluno para com o Programa.
                        As respostas foram todas tabuladas e arquivadas. Ao final do projeto, o mesmo questionário voltou a ser aplicado aos 397 alunos que conseguiram chegar até ao final e as respostas recebidas, tabuladas e foram totalmente diferentes das primeiras, quando nenhum dos alunos sabia o que tinha ido fazer no SCV. Isso foi considerado muito positivo e foi uma exata mensuração de que os temas Transversais voltados à tinham surtido os efeitos desejados. Houve mudanças significativas em todas as respostas.
                        Homossexuais passaram a se admitir sem serem discriminados; negros, índios,  envolvidos com problemas judiciais passaram a se declarar com mais naturalidade; os novos tipos de moradias foram consideradas como um grande avanço quando apenas eram feitos mais um quarto, enfim, todos passaram a ser melhores. Com relação ao emprego, muitos jovens se inseriram no mercado formal de trabalho, outros passaram a gostar de seus locais de estágios e foram contratados.
                        Alunos do Projeto passaram a dizer que as palestras de cidadania, drogas, paternidade e maternidade responsável, aborto, violência de um modo geral tinham sido importante para eles, como também as regras que foram criadas pelos próprios alunos e depois de votadas democraticamente, sem vencessem, eram impostas pela Coordenação o Projeto a eles próprios, que as cumpriam sem discussão, pois tinha sido a vontade da maioria. Com isso, o projeto atingiu outro patamar: o da consciência e cidadania coletiva.
                        Essas mudanças são significativas e importantes em vários de seus aspectos. Dos alunos pesquisados, no início do projeto, 376 informaram estavam cursando a 8ª série do Ensino Fundamental, 21 cursavam entre a 1ª a 4ª séries e 3 estavam entre a 5ª a 7ª séries do Ensino Fundamental.  Com relação à primeira tabulação, os resultados apresentados foram: 241 estavam em busca do primeiro emprego, 144 estavam desempregados há algum tempo, 10 exerciam atividades autônomas e 5 estavam trabalhando informalmente.
                        Dos 397 participantes que concluíram o SCV, 19 alunos estavam concursando a 5ª série do Ensino Fundamental, 3 completaram a 4ª  série, 76 estavam para completar a 8ª série, 142 haviam concluído o Ensino Fundamental, 154 foram promovidos para o Ensino Médio e 3 haviam completado o Ensino Médio e fizeram exame vestibular para ingressar em cursos superiores em Faculdade pública. Os alunos Valeney Peixoto de Souza, David Soares de Sena e Malquesedeque Veloso de Paula não foram aprovados na primeira tentativa de entrar em um curso superior, mas prometeram continuar tentando.
                        Sobre a situação de emprego, 232 informaram que continuavam em busca do primeiro emprego, 103 permaneciam desempregados, 35 já estavam trabalhando como profissionais autônomos e 27 estavam formalmente empregados.
                        Observaram-se, ainda, mudanças qualitativas em tipos de leituras, tipos de músicas mais ouvidas, tipos de filmes mais assistidos, também na prática desportiva e na relação dos alunos com as autoridades foram observadas importantes mudanças. No início do Projeto, 87 alunos informaram que tinham problemas com as autoridades. Ao final do projeto esse número era só de 58, pois alguns já tinham cumprido suas penas alternativas. Os que já tinham cumprido suas penas alternativas já se consideravam como “livres” e somente dois dos 397 que chegaram ao final das atividades se envolveram com atos infracionais de roubos durante o processo. Esses dois foram presos e, depois de soltos, retornaram ao SCV e não delinquiram mais e ainda foram convidados para falar sobre suas “experiências” na Penitenciária Central do Estado.
                        Em Manaus, o SEST e o SENAT são as únicas entidades executoras do SCV, pois são dirigidas por um Assistente Social. As entidades estão localizadas na Zona Leste da cidade, a que mais cresceu no período 91/96. O bairro Jorge Teixeira, onde se localizam as entidades, é um dos dez que compõem a Zona Leste, cresceu no período 51,94%  seguido pelos bairros Tancredo Neves, com 20,90% e o bairro Distrito Industrial, com um crescimento de 14,18%.
                        Sobre esse crescimento desordenado, através de invasões, principalmente em época de campanhas política para o Município, o assistente social Carlos Costa em seu livro “O Caminho não percorrido – A trajetória dos Assistentes Sociais Masculinos em Manaus”, sustenta que esses problemas começaram durante a formação da cidade, no início do século, com a exploração e depois decadência da borracha, devido à falta de uma política pública de ocupação dos espaços urbanos. Como consequência, os problemas sociais exigem cada vez mais investimentos do Estado, que nem sempre consegue solucionar todas as questões com a mesma velocidade com que elas ocorrem.
                        Segundo os registros correspondentes ao período de outubro/97 a outubro/98, o Conselho Tutelar da Zona Leste, órgão do Aparelho de Estado Municipal encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes, os casos mais frequentes são de crianças e adolescentes drogaditos, com 13%, desvio de conduta com 9,8%, fugas 8,5%, ausência de condições para o convívio familiar com 5,6% e abandono de família, com 5% dos casos atendidos. Desse total, a muitos dos envolvidos são filhas ou filhos de ex-funcionários de indústrias da Zona Franca, que perderam sua função laborativa em virtude da redução da atividade econômica.
                        O SCV desenvolvido pelo SEST/SENAT possui todo seu eixo estrutural dentro dos parâmetros definidos pelo Ministério do Trabalho, buscando a clientela específica do programa direcionado aos jovens e a uma consciência crítica de cidadania.
                        A execução do Projeto, contudo, não seguiu as normas do Ministério do
Trabalho quanto à realização de todas as suas etapas dentro das próprias comunidades onde residem os jovens. O SEST/SENAT optou pela centralização de todas as fases em um único lugar e, em relatório enviado à Secretaria de Estado de Ação Social e do Trabalho, do Governo do Estado, o Coordenador esclareceu que
Buscamos a centralização de todas as ações porque entendemos que a troca de experiência entre jovens de diversas áreas da cidade, todos os problemas próprios e distintos, poderá enriquecer a experiência de todos. Entendemos, portanto, que se torna mais produtivo trabalhar os temas transversais de forma compartilhada” (documento interno do SEST).
                        Durante seis meses, a execução do SCV se propôs a repassar aos jovens, conhecimentos de cidadania através de aulas expositivas, palestras, atividades comunitárias, aulas de qualificação profissional e outras. Com 100 horas/aula de duração e quatro horas de aula por dia, os jovens aprenderam temas como organização comunitária; Estado; Sociedade; Poderes Públicos; discriminação; democracia; bem comum; consenso; solidariedade; direitos humanos; direitos civis, políticos e pluralidade cultural; juventude; comportamento; saúde e desafios da globalização.
                        Depois de concluídas as horas de cidadania, os jovens passaram por mais 100 horas de qualificação profissional, alguns voltados ao mercado de trabalho formal e outros voltados ao processo de geração de renda, como confeitos, embrulhos para presentes, decoração de festas, auxiliar de salão de beleza, produção de doces e salgados e cabeleireiro. Durante a execução desses cursos, os alunos também participavam de estágios supervisionados.
                        Concomitantemente com essas etapas, e mais 100 horas de prestação de serviços comunitários, todos os participantes do projeto retornaram ao ensino regular, alguns optando pelo sistema supletivo e outros pelo processo de aceleração de estudos. O sistema de controle da regularidade dos alunos em cada uma das etapas era feito, como já foi dito, com a apresentação de declaração de frequência da escola ou  do local de estágio. Sem um ou outro documento, os jovens ficavam “impedidos” de receber a bolsa de ajuda financeira mensal no valor de R$ 60,00 (sessenta reais).
                        Ao final de todas as etapas, o SENAT registrou resultados positivos em todas as áreas e foram considerados como “ganhos de cidadania” para todos os jovens.  
4.      A CIDADANIA NA VISÃO DOS JOVENS
                                      4.1 DEPOIMENTOS (*)
* Para todos os depoimentos a seguir, foram usados nomes fictícios para preservar a identidade dos jovens. As formas escrita como estão nos depoimentos a seguir receberam um tratamento gramatical do autor, de forma livre, mas respeitando os pensamentos primários dos alunos entrevistados.

ANTÔNIO S. DE O.S., infrator, originário do Programa de Liberdade Assistida. Fez curso de informática e conseguiu ingressar no mercado de trabalho:
Eu não sabia nada sobre cidadania. Aliás, eu mesmo  nunca tinha escutado essa palavra antes. Quando me falaram pela primeira vez, pensei que era algum programa do Governo ou coisa assim...Bem, hoje eu entendo o que é cidadania. Ela é muito importante prá nós se relacionar porque sem ela não somos ninguém. Por isso, tirei meus documentos, registrei meu filho e com uma garota que ficou comigo”.
            ANDRÉ, 17 anos, homossexual:
...foi difícil me assumir. Quando eu cheguei aqui tinha até vergonha de dizer que eu era gay. Mas aí vi que aqui me respeitavam e decidi tornar pública minha opção. Acho que isso foi uma questão de cidadania...Hoje eu sei o que é cidadania.”
            APARECIDA, 16 anos, dois filhos e envolvida com drogas. Abandonou o ensino na 1ª série do Ensino Fundamental. No SCV procurou tratamento. Depois de seis meses, submeteu-se a provas do Ensino Supletivo, obtendo aprovação em todas elas:
Eu procurei o programa porque me disseram que receberia uma bolsa. Isso pra mim é importante porque os pais dos meus filhos não me ajudam em nada...Eu não entendia direito de direitos e deveres, dessas coisas que falaram aqui. Nem sabia que essas coisas significavam a mesma coisa que cidadania. Eu soubesse antes, não tinha emprenhado duas vezes. Pra mim, cidadania era coisa que só passava na televisão (...) Mudei de vida. Hoje sei que se eu quiser, posso ter um futuro melhor para mim e para meus filhos. Fiz curso, estou trabalhando, me tratei contra as drogas, estou curada e quero voltar a estudar e não pretendo mais parar...”
ERIVELTON J.L. 18, negro. Abandonou a Escola quando  se alistou no Exército. Depois de dispensado, por excesso de contingente,  não voltou mais a estudar. Fez supletivo durante o Programa SCV e iniciou o ano de 2002 cursando o 1º Ano do Ensino Médio:
Ser negro e ser pobre no Brasil é sofrer um duplo preconceito. Eu enfrento isso desde pequeno. Na Escola eu já era discriminado e quase não tinha amigos. Levava isso na esportiva, mas no fundo me incomodava. Aqui no SCV, comecei a ver mais de perto essa questão porque vocês trabalham isso nas palestras, de forma muito bonita e sem banalidade...Hoje, digo: ser negro é um orgulho para mim e sinto felicidades nisso. Também fiquei muito feliz com a abordagem que vocês fizeram sofre cidadania. Aliás, acho que o estudo da cidadania deveria fazer parte do curriculun escolar e nós podemos exercê-la. Acho que o Governo Federal foi muito feliz em criar um programa desses...Ensina muito!
            CONCEIÇÃO, 19 anos, três filhos. Casou aos 15 anos e foi abandonada pelo marido aos 18. Usuária de drogas, entrou no SCV só para receber a ajuda financeira. No início, andou faltando algumas aulas. Depois de 30 dias, passou a frequentar todas as aulas e sentava nas primeiras filas “para ouvir melhor as palestras”, embora tivesse de freqüentar as aulas com uma de suas filhas. No SCV fez curso de auxiliar de cabeleireira   e passou a trabalhar em casa, como autônoma:
O que me trouxe ao SCV foi a bolsa que o Governo paga de R$ 60,00 (sessenta reais) todos os meses...É pouco, mas para quem não ganhava nada e vivia do próprio corpo, é melhor do que nada. No início, eu só vinha por causa do dinheiro, não queria saber de nada. Eu pensava que só bandidos tinham direito a isso...Depois fui vendo que não era bem assim e me arrisco a dizer que a cidadania é uma coisa que aparece onde o Estado fica ausente porque aí é que as pessoas se organizam e lutam pelos seus direitos...Foi muito bom aprender sobre cidadania, sobre sexualidade, sobre prostituição, sobre drogas...principalmente para nós mulheres que somos obrigadas a aceitar tudo o que o homem quer. Comigo isso acabou. Eu sei me defender, aprendi o que pode e o que não pode. Aliás, aprendi até que se eu casar de novo e for obrigado a fazer sexo com meu parceiro seu eu querer, ele estará cometendo uma violência comigo. Não sei se isso tem alguma coisa a ver com cidadania, mas sei que no SCV aprendi muita coisa boa”.
            ADIMAR, 19 anos, filho de pais separados, portador de deficiência auditiva. Devido às dificuldades de locomoção, deixou de freqüentar algumas aulas. Entrou no SCV, voltou a estudar e concluiu o Ensino Fundamental:
A palestra sobre direitos dos deficientes foi muito importante...Se eu conheço meus direitos, posso exercer plenamente minha cidadania. O que falta é ensinarem isso também nas Escolas Públicas. Acho que a cidadania é um conceito de cidadão e cidadão, podemos ser todos nós, eu, você, o colega do lado o outro e o outro e assim é que se forma uma corrente. Eu lia muito, embora não estudasse mas a forma que o SCV foi sendo desenvolvimento aprendi muito mais sobre o que é cidadania, sobre deveres, sobre direitos etc. e até mesmo sobre mim, minha deficiência...passei a me aceitar mais. No início, cheguei a pensar eu as pessoas não gostavam de mim porque eu era deficiente. Mas fiz muitos amigos aqui dentro e estou muito feliz...”
            AURIANE, 17 anos, deficiente auditiva. Fazia leitura labial do palestrante para entender o que ele estava falando. Sentava na primeira poltrona do auditório. Durante o SCV, fez estágio e uma Escola Pública. Cursava a 6ª série do Ensino Fundamental quando ingressou no Programa. Durante seis meses, ensinou a Linguagem Brasileira de Sinais para outras pessoas e se comunicava com elas quando precisava de mais explicações:
Estou estudando, mas como havia espaço no programa para deficiente, eu vim. Nos primeiros, não conseguia fazer leitura labial das palestras porque o professor falava muito rápido. No primeiro dia, minha mãe me trouxe, mas depois passei a vir sozinha...Queria mesmo aprender mais coisas. Esses temas abordados aqui sobre direitos, deveres, cidadania, sexualidade, drogas, casamento e muitos outros deveria ser ensinado nas Escolas com a mesma linguagem que vocês abordam no SCV...O que mais me prendeu foi o tema sobre cidadania. O que é a cidadania e como eu posso exercer essa cidadania, isso foi o que mais gostei...Adorei o projeto e espero poder participar de outros também”.
T.M, 19 anos. Cumpria medida sócio-educativa. Foi responsável por roubo, assalto e homicídio, além de envolvimento com drogas como maconha e cocaína. Começou na vida do crime com 12 anos, quando foi preso pela primeira vez. Abandonou a escola na 5ª série do Ensino Fundamental. Entrou no programa SCV por influência de um ex-aluno do Projeto nos anos de 1999/2000. Foi um pedido da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania:

...a gente nunca sabe, né? Ele (o colega que o indicou) disse que isso aqui é bom, que todos podem ficar à vontade...eu decidi arriscar e estou gostando. Só não sabia que era assim...que as decisões tomadas pela turma valeriam para todos os outros...mas gostei. Meu pai nunca me ensinou esses valores, nem na Escola aprendi isso, mas fiquei para ver até onde isso ia levar...Hoje posso dizer que aprendi muito, mudei, sou outra pessoa agora. O mundo do crime, nunca mais...Aprendi a dar bom dia, a ouvir, a respeitar, até porque um dia o palestrante disse que haviam telefonado para cá, por causa da camisa do programa, e falaram que eu tinha pixado uma parada de ônibus. Não fui eu, mas vi quem foi e antes que eu levasse a culpa, decidi pedir desculpas ao meu colega e dizer quem a tinha pixado. Até arranjei uma namorada aqui no SCV, larguei a vida de crimes, as drogas, eu mudei, cara, pode acreditar. Não sei se isso que aconteceu comigo pode ser definido como cidadania, mas estou me sentindo como se eu fosse uma outra pessoa; passei a me produzir melhor e acho que estou agradando. Se eu cumpro meus deveres posso, exigir meus direitos também...Acho que é isso...Eu queria ter esse mesmo ensinamento nas Escolas onde já estudei mas os professores só ensinam sobre português, matemática, geografia, história etc. Acho que a Escola de hoje está muito distante da realidade que queremos.

            EVERTON, 19 anos, nunca se envolveu com qualquer tipo de problema, mas vivia com menos de um salário mínimo. Era uma pessoa retraída, de poucos amigos, no início. Ao deixar o SCV, havia criado em sua comunidade uma Biblioteca Comunitária, com o apoio da Igreja do bairro. Essa biblioteca mereceu o apoio do SEST/SENAT e da Secretaria de Estado do Trabalho e do Bem-Estar Social, promotora do SCV, através do Governo Federal:
Voltei a estudar, criei a biblioteca e agora sei que também posso ser útil. Minha mãe tem orgulho de mim e eu tenho orgulho do fui capaz de fazer. A minha resposta ao SCV, é a capacidade que encontrei em ajudar outras pessoas a quem quer mais...Acho que isso também é cidadania, porque o saber é um direito de todos...Os livros não são todos novos, mas isso não importa. O importante é que me tornei um cidadão e estou fazendo minha parte. Isso é o que verdadeiramente importa”
            ROSANGELA, 19 anos, homossexual. Foi expulsa de cada aos 13 anos. Envolveu-se com uma mulher mais velha. Seu relacionamento com a parceira demorou pouco tempo. Procurou um namorado mais voltou a viver com mulher novamente. Hoje, vive com uma professora. Voltou a estudar e concluiu a 8ª série do Ensino Fundamental.  Fez curso de auxiliar de cabeleireira e hoje e autônoma, no salão que montou com a ajuda de sua parceira:
“Agradeço ao SCV pelo que sou agora. Sempre sofria humilhações pela minha opção sexual, mas eu gosto e me sinto bem com mulher, o que eu posso fazer, né? Tive minha primeira experiência com mulher aos 11 anos, depois tentei namorar com garotos, mas não me sentia bem. Quando estudava, me apaixonei por uma professora mas ela não me dava bola porque era casada. Mesmo assim, ainda ficamos uma vez e depois ela passou a me desprezar. Cai em depressão, queria morrer e parei de estudar...Agora vivo com minha companheira e não escondo mais minha opção sexual. Isso, afinal, não é um crime. Sou uma mulher jovem, bonita,  desejada pelos homens, mas gosto mesmo é de mulher. Aqui encontrei muita gente com problemas igual ao meu, e a todos digo para enfrentar o os desafios...Estou estudando com o apoio de minha parceira. Acho que tenho muita coisa para ensinar para outras pessoas...”
                        Durante os seis meses de duração do SCV, os jovens se reuniam diariamente no auditório do SEST/SENAT e ouviam aulas, palestras ministradas por instrutores das Instituições ou por convidados. A tônica principal de todas as ações do SCV era voltada sempre para discutir a cidadania e de como inserir os jovens de volta à sociedade.

CONCLUSÃO
                        Os estudos, as pesquisas, os questionários aplicados no início, no meio e ao fim do projeto SCV aos alunos, conseguiu provar que sem uma verdadeira democracia e sem uma Escola eficiente que se volta aos temas atuais da violência, drogas, prostituição, sexualidade etc., não pode haver cidadania. Conclui que o ensino hoje é um perfeito “faz de conta”: faz de conta que eu ensino e fazes de conta que aprendes.
                        Segundo os registros educacionais do Governo Federal, na última década, a universalização do Ensino Fundamental de 7 aos 14 anos, alcançou 96% das crianças dessas faixas etárias. As universidades registraram um crescimento de 20% em suas matrículas e as escolas de Ensino Médio registraram um crescimento de 29% na última década pesquisada.
                        Os registros quantitativos registrados são importantes com números, porque demonstram o preenchimento de um vazio antes existente, mas não provam que o ensino está atendendo às reais necessidades dos alunos, principalmente no que diz respeito ao resgate da cidadania, aos temas transversais.
                        O despreparo e a desqualificação de muitos professores, problema reconhecido pelo próprio Ministério da Educação, é um dos fatores que nos permite afirmar que a massificação do 4ensino-cidadão é uma realidade ainda a ser alcançada.
                        Há um circulo fechado entre o que diz que ensina e o que finge que aprende. Melhores professores ou professores comprometidos com a realidade social de suas comunidades e que saibam transmitir esses conhecimentos aos alunos, já seria um posso muito positivo nessa direção. O ensinamento dos temas transversais, colocados para substituir as antigas disciplinas de Organização Social e Política do Brasil e Moral e Cívica, embora na essência seja perfeito, na verdade não atingem o alunado porque não é bem trabalhado nas Escolas.
                        Dessa forma, os alunos nunca se tornarão melhores profissionais no mercado de trabalho, porque também foram abolidos os cursos técnicos profissionalizantes. Este circulo está se fechando no Ensino Superior, mas também se ressente da falta de qualidade e faz com que jovens universitários procurem estágios remunerados antes de completarem os primeiros meses semestres de aprendizagem.
                        O Governo Federal precisa possibilitar vagas no Ensino Superior, mas que sejam criadas com qualidade porque os egressos do Ensino Médio são geralmente oriundos de famílias cujo perfil sócio-econômico-cultural não lhes permitem pagar uma Faculdade particular.
                        O que se busca agora é uma escola-cidadã, como já imaginava o educador Paulo Freire, desenvolvendo uma formação de dentro do próprio aluno voltada à comunidade que o cerca. Uma formação que não objetive a formação posterior em bacharelado ou licenciatura. As escolas públicas podem e devem oferecer disciplinas voltadas a formação humanísticas. Dessa forma, poder-se-ia ter um ensino mais crítico, realista, voltado à realidade das comunidades no entorno das Escolas. Um ensino voltado à cidadania, envolvendo toda a comunidade em palestras e debates de temas que lhes interessem.
                        O conceito de igualdade e oportunidade é entendido pelas comunidades,  muitas vezes, como “mais igual para uns e menos igual para os outros”, como definiu um dos entrevistados durante a execução do SCV.
                        A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, m seu manual “Participando das Políticas e Ações”, com redação do professor Carlos Alberto Trindade, na série Política Municipal para Pessoas Portadoras de Deficiê3ncia, afirma:
O reconhecimento de que existem diferenças entre as pessoas é o    primeiro passo  ser no caminho que levará a uma nação mais ampliada de cidadania (Pag. 3).
                        O mesmo documento acrescenta, que
Ao longo dos tempos, numa perspectiva democrática, a sociedade criou e vem buscando o aperfeiçoamento de instrumentos e instâncias administrativas destinadas a permitir a regulação da distribuição dos bens e de serviços públicos de forma igualitária entre todos os cidadãos”(Op.Cit., pag. 5).
                        O indivíduo co-participante da história social deve apropriar-se dos conhecimentos formalmente elaborados e das relações sociais vivenciadas como subsídios para atuar como um agente transformador da sociedade ou espectador consciente de sua passividade. E todo esse processo deve acontecer dentro das Escolas publicas ou privadas, com a massificação e a aplicação de temas transversais em todas as séries dos Ensinos Médio e Fundamental.
                        Fica evidente, portanto, que o homem, cidadão da cidade, deve exercer o seu direito político em sua mais ampla dimensão, a fim de tornar-se um cidadão completo. O exercício pleno da cidadania dá-se, inicialmente, na dimensão educacional, com a criação de uma consciência crítica da realidade e da dimensão política, através da participação nos destinos das cidades. Como definiu o filósofo Aristóteles, em sua obra “Política”, “a autoridade civil ou política é aquela que rege homens livres e iguais”, ou seja, acima dos governos está o homem-cidadão-livre e igual em deveres e direitos.
                        Como bem anunciou o filósofo Aristóteles, ao se referir às mudanças políticas, o povo mais pobre, vítima de injustiças dos governos, sempre capaz de produzir mudanças no Estado no Estado quando possui consciência crítica e ação de cidadania da realidade.
BIBLIOGRAFIA
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